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23 de agosto de 2013

"Memória como reserva de mercado", por Pádua Fernandes (artigos de 2010 a 2012)

Muito antes da aprovação do Projeto de Lei 4699/2012 pelo Senado Federal (novembro de 2012), o escritor Pádua Fernandes divulgou no seu blog " O Palco e o Mundo" uma série de críticas muito lúcidas à proposta de regulamentação da profissão de historiador. 

   

Reproduzimos abaixo essa série de postagens, indicando suas datas respectivas. Como o texto foi escrito antes da aprovação do projeto pelo Senado, é mencionada a numeração antiga do projeto de lei: Projeto de Lei do Senado (PSL) 368/2009.


Pádua Fernandes



Memória como reserva de mercado, parte I
(19 de agosto de 2010)
Pádua Fernandes

Ainda tramita no Senado Federal o projeto de lei PLS 368/2009, que pode ser visto aqui:

TEXTO FINAL APROVADO PELA COMISSÃO DE ASSUNTOS SOCIAIS
PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 368, DE 2009

Regula o exercício da profissão de historiador e dá outras providências.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei regula a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade profissional de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta Lei.
Art. 3º O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é privativo dos portadores de:
I – diploma de curso superior em História, expedido por instituições regulares de ensino;
II – diploma de curso superior em História, expedido por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
III – diploma de mestrado, ou doutorado, em História, expedido por instituições regulares de ensino superior, ou por instituições estrangeiras e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação.
Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de televisão, sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação;
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou empregos de historiador, é obrigatória a apresentação de diploma nos termos do art. 3º desta Lei.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados.
Art. 7º O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Poderia, no entanto, este projeto criar hipóteses abusivas de atribuições exclusivas dos portadores de diploma em História? Estar-se-ia criando uma reserva de mercado para a memória? Trata-se de algo a discutir.


http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/08/memoria-como-reserva-de-mercado-parte.html

Memória como reserva de mercado, parte II
(22 de agosto de 2010)
Pádua Fernandes

O projeto de lei PLS 308/2009, sobre que já escrevi aqui: 
prevê, no artigo 4o., VI, combinado com o artigo seguinte, a "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos" como competência exclusiva dos portadores de diploma, seja de graduação, de mestrado, ou de doutorado (mas não apenas pós-graduação lato sensu) em História.

O que, no entanto, pode ser visto como "tema histórico"? Algum fato social pode ficar de fora de tão larga categoria? Algum produto da cultura - e, nisso, a própria teoria histórica?

Em princípio, não. A amplitude do projeto á avassaladora.

Como se constituem os "temas históricos" a que alude o projeto? Por meio de um olhar diacrônico sobre os temas sociais. Trata-se de um trabalho que se constrói sobre fontes. Lembremos de Adam Schaff em História e Verdade (obra que a Martins Fontes publicou em 1995, em tradução de Maria Paula Duarte):

"No seu trabalho, o historiador não parte dos fatos, mas dos materiais históricos, das fontes, no sentido mais extenso deste termo, com a ajuda dos quais constrói o que chamamos os fatos históricos. [...] Assim, a despeito das aparências e das convicções correntes, os fatos históricos não são um ponto de partida, mas um fim, um resultado."

Esse resultado parte de materiais que são estudados também por outras disciplinas - não se trata de tijolos já marcados para construção do cenotáfio da "ciência histórica"! Pergunto, portanto: terão os outros saberes que se inclinar diante dos portadores daqueles diplomas para poderem olhar diacronicamente seus objetos?
Ou melhor, já que a questão é menos epistemológica do que de oportunidades profissionais, pergunto: os laudos sobre história da arte somente deverão ser elaborados por tais portadores, não por artistas ou críticos de arte? Projetos sobre história da filosofia deverão ser monopólio daqueles portadores, e não daqueles que estudam filosofia sem tal crachá acadêmico? Um parecer de história do direito somente deverá ser escrito por um portador daquele diploma, mesmo que não saiba, por exemplo, a diferença entre direito subjetivo e direito objetivo?

Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.

E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?



Memória como reserva de mercado, parte III
(6 de setembro de 2010)
Pádua Fernandes

O projeto de lei PLS 308/2009, sobre que comecei a escrever aqui:
tem, entre suas previsões, uma cláusula Escrava Isaura:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
[...]
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de televisão, sobre temas de História;

A cândida e genérica expressão "temas históricos" faz logo imaginar uma carreira televisiva para estes que a lei chama de historiadores, carreira que transbordará também para a ficção: não existem as telenovelas históricas? Escrava Isaura não é o maior sucesso de exportação na balança comercial da tevê brasileira? 

Os escritores desse gênero deverão ampliar sua equipe para incluir os portadores de diploma em História (o que não é o mesmo que historiador - trata-se de outro erro básico do projeto) por força do artigo quinto do projeto, que torna a atividade acima privativa dessa categoria.

A cláusula Escrava Isaura deste projeto de lei (se ele for aprovado) será um grande trampolim para a globalização da classe dos portadores de diploma em História brasileiros!



Memória como reserva de mercado, parte IV:
Guias turísticos com diploma
(3 de março de 2011)
Pádua Fernandes

O projeto que deseja regulamentar a profissão de historiador, Projeto de Lei do Senado nº 368, continua em trâmite em Comissões do Senado.

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou em dois de março de 2011 o parecer do Senador Flexa Ribeiro, 
que lembra que a justificativa do autor do projeto, Senador Paulo Paim, era 

"[...] a ampliação da área de atuação dos historiadores inicialmente restrita à pedagogia, a questões culturais e ao patrimônio histórico. Hoje esses profissionais atuam, entre outras áreas, no âmbito industrial, na consultoria relativa ao histórico de produtos; no turismo, desenvolvendo roteiros turísticos para visitas a locais históricos e culturais; na comunicação, recolhendo e organizando informações para publicação e produções e nas artes, fazendo pesquisa de época para elaboração de roteiros teatrais, cinematográficos e televisivos."

Eles podem atuar nessas áreas, certamente; mas por que somente eles deveriam nelas trabalhar? Trata-se da criação da reserva de mercado, almejada pelo malfadado projeto.

Praticando a difícil arte de não conseguir tirar consequências lógicas dos fundamentos expostos, o Senador Flexa Ribeiro prossegue:

"A doutrina constitucional e trabalhista defende a não ingerência excessiva do legislador no exercício das profissões. Regras excessivas e restrições insensatas acabam beneficiando pequenos grupos corporativos que acabam supervalorizando o próprio trabalho em relação ao trabalho de igual valor de outros profissionais. São consideradas exceções as atividades que envolvem a saúde, a segurança e a educação dos cidadãos. Nesses casos, a omissão do legislador pode permitir que pessoas inabilitadas, no exercício profissional, coloquem em risco valores, objetos ou pessoas."

Que relação tem isto com o turismo, o desenvolvimento de produtos e as telenovelas? Disso, o Senador conclui:

"No caso dos historiadores é inegável que eles exercem um papel relevante na sociedade, com impactos culturais e educativos capazes de ensejar a presença de normas regulamentadoras do exercício profissional. Ademais, a inexistência de uma regulamentação pode permitir que o campo de atividade desses profissionais seja ocupado por pessoas de outras áreas, muitas delas, com profissões regulamentadas, mas sem as qualificações necessárias para levar a bom termo o trabalho com objetos e assuntos históricos."

Apenas este parágrafo. Um só. É claro que, se o nobre Senador fosse escrever mais e fazer realmente alguma análise da matéria que lhe coube relatar, a conclusão teria que ser contrária. É notável a ligeireza no trato da Constituição (em uma comissão, nota-se, dedicada ao direito constitucional), mas é comum que, no Poder Legislativo, os pareceres sejam sumários a esse pronto, de tão concentrado e conciso é o respeito à constitucionalidade.

Eu havia escrito sobre a atuação dos historiadores como consultores dos meios de comunicação, mas a Comissão foi favorável a retirar a expressão, nos termos da emenda do Senador Álvaro Dias, "em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de Televisão" do inciso II artigo quarto do projeto porque "excessivamente detalhista e enumeratório, o que depõe contra a generalidade, clareza e precisão da norma." Terá sido caso do lobby das tevês?

O sumário parecer do Senador Cristovam Buarque
(na Comissão de Assuntos Sociais, que não deliberou ainda) também segue a emenda para, "retirar elementos que poderiam, no futuro, impedir os historiadores de exercer plenamente suas atribuições, razão pela qual deve ser acatada." Isto é, não limitar a campo algum essa reserva.

Falta ainda aprovação nas Comissões de Assuntos Sociais e de Educação. Depois, se isso ocorrer, ainda terá que seguir à Câmara dos Deputados.

Por que esse monstrengo regulatório não deve ser aprovado? Deve-se lembrar que tudo que tem natureza social possui caráter histórico. A amplitude do projeto em criar reserva de mercado para os diplomados em história é tamanha que poderá fazer com que os doutores em letras, na área de concentração de teoria e história da literatura, sejam impedidos de lecionar história da literatura por não terem feito o doutorado em história. Um doutor em artes não poderia, por exemplo, dar consultoria sozinho para uma exposição sobre o surrealismo; teria que pedir para um formado qualquer em história assinar com ele o trabalho. E assim por diante.

Outro elemento risível dos pareceres do Legislativo é apontar que haveria um dano ao país se pessoas não formadas em história atuassem nessa área. Isso é fundamental porque, sem afirmar tal enormidade, ter-se-ia que reconhecer que o projeto é inconstitucional, já que o princípio geral é o da liberdade de profissão.

Pergunto, portanto: que prejuízos nos causou Evaldo Cabral de Mello, que nunca concluiu um curso de graduação? Que historiador diplomado no Brasil é melhor do que ele? Que danos ao nosso país provocou Alberto da Costa e Silva? 

Será que os historiadores que inspiraram esse projeto estão simplesmente querendo eliminar a concorrência de profissionais mais capazes? Conseguindo, com uma canetada legislativa, impedir que outros possam vasculhar o campo comum da memória? E existem ladrões maiores do que aqueles que se apossam do comum?

Os doutos legisladores que estão aprovando em comissões o projeto simplesmente ignoram que significativa parte da melhor história no país não é ou não foi feita por diplomados nessa área?

Esse projeto não está realmente preocupado nem um pouco com a qualidade da história no Brasil, e sim com a reserva de mercado, que vai se meter até com os profissionais de turismo - já que até mesmo a elaboração de guias turísticos precisarão da consultoria de diplomados em história...

A profunda ignorância na matéria, claro, é o que habilita os nobres legisladores a aprovarem projetos corporativos como esse. Com tal natureza corporativa, poderia não ser nocivo ao bem comum?



http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/memoria-como-reserva-de-mercado-v.html

Memória como reserva de mercado, parte V:
Astros e historiadores
(20 de novembro de 2012)
Pádua Fernandes

O projeto de reserva de mercado para os historiadores com diploma em história, que nasceu da pena do senador Paulo Paim (PT/RS), foi aprovado no último 7 de novembro:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=92804 
Segue para a Câmara dos Deputados, onde espero que seja rejeitado.

O Senado Federal teve outros episódios recentes de hostilidade contra a História, como este caso clamoroso de esquecimento politicamente interessado realizado por Sarney e historiadores amigos do poeta e político:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/jose-sarney-ou-o-esquecimento-como.html

Mencionei o projeto pela última vez nesta nota:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html
[esta postagem está também reproduzida aqui, mais abaixo]

"A incapacidade de pensar o país (ou de pensar tout court) é, provavelmente, um dos fatores que fazem com que o Congresso Nacional esteja se dedicando mais a atender grupos de interesses do que a vislumbrar horizontes mais largos. A amnésia militante do projeto de reserva de mercado para os historiadores é um exemplo [...]
"Esse tipo de medida legislativa é exemplar do modus operandi da classe política no Brasil: criar barreiras e impedimentos. O Brasil continua a ser uma grande fazenda improdutiva em que políticos querem criar seus currais e colocar porteiras. Cartórios, depois, registram as apropriações."

A aprovação marcou-se, como já fiz notar, por pareceres de ligeireza absurda, que logo assinalam o desprestígio da educação na classe política brasileira - o que inclui o tão raso documento assinado por Cristovam Buarque:
http://www6.senado.gov.br/mate-pdf/70453.pdf
Não se trata de matéria que tenha realmente merecido alguma reflexão de tais excelências, com exceção dos dois senadores que votaram contra o projeto, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB/SP) e Pedro Taques (PDT/MT).

A Folha de S.Paulo publicou matéria de Fernando Rodrigues, em 10 de novembro, criticando a aprovação, o que logo gerou singular resposta da ANPUH:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandorodrigues/1183568-historiador-so-com-diploma.shtml
http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=3607

A Associação, muito em conformidade com o espírito do projeto, começa a resposta com o discurso da autoridade: eles, que são "historiadores profissionais", sabem, e o pobre Fernando Rodrigues, não. Ele não teria sido capaz de analisar o projeto, já que não saberia elaborar um "discurso de prova". E mais: "Em nenhum momento este projeto veda que pessoas com outras formações, ou sem formação alguma, escrevam sobre o passado e elaborem narrativas históricas." Assina a nota o presidente da ANPUH, Benito Bisso Schmidt, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Essa nota involuntariamente atesta como a pesquisa histórica não deve, de forma alguma, tornar-se monopólio dos historiadores com o diploma do artigo terceiro do projeto, já que nem mesmo o presidente da Associação Nacional mostra-se capaz de ler corretamente um documento legislativo, embora a redação final do projeto não apresente muita sutileza:
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=116414&tp=1

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade profissional de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta Lei.
Art. 3º O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é privativo dos portadores de:
I – diploma de curso superior em História, expedido por instituição regular de ensino;
II – diploma de curso superior em História, expedido por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
III – diploma de mestrado ou doutorado em História, expedido por instituição regular de ensino superior, ou por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação.
Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação;
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou empregos de historiador, é obrigatória a apresentação de diploma nos termos do art. 3º desta Lei.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados.
Art. 7º O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

O artigo 5º, ao contrário do que faz supor a frágil hermenêutica da ANPUH, garante a reserva de mercado, a ser cartorialmente fiscalizada segundo o artigo 7º. Logo, a História da Arte tornar-se-á feudo exclusivo de pesquisadores com diploma em História. A História do Direito submeter-se-á ao cercamento dessas mesmas pessoas, mesmo que desconheçam a diferença entre lei extravagante e legisladores extravagantes, como nossos excelentíssimos senadores. A História da Música não poderá ser ensinada pelos professores de Música, e sim por historiadores diplomados que talvez não saibam distinguir um intervalo de segunda menor de um de terça maior. História da Matemática, idem, mesmo que o historiador saiba somar tão bem quanto o pessoal da ANPUH sabe interpretar projetos de lei.

Tendo em vista a historicidade de tudo que é social, a vastidão de possibilidades profissionais sugeridas por essa excrescência legislativa, ainda no estado de projeto, atordoa.

O senador Aloysio Nunes Ferreira levantou o problema:
http://www6.senado.gov.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=08/11/2012&paginaDireta=59522

Considero, Sr. Presidente, com todo o respeito, que o projeto incorre num profundo equívoco, na medida em que torna privativo daqueles que concluíram o curso de História na universidade lecionar em matérias que tratem de história.
Darei um exemplo a V. Exª dos absurdos que essa situação pode criar. Por exemplo, num curso de história se faz apelo a um estatístico para tratar de algum aspecto sobre a disciplina. Não pode. Por quê? Porque o estatístico não é formado em História, logo não pode dar curso de história, não pode lecionar num curso de história se este projeto for aprovado. Nem graduação nem pós-graduação.
Imagine V. Exª um curso de pós-graduação em História. Há o interesse de se ouvir um sociólogo, um economista ou um jurista para ministrar um aspecto particular daquele curso de pós-graduação. Não pode. Por quê? Porque não são formados em História, logo
não pode dar aulas em curso de História. Quer dizer, é uma coisa completamente absurda, penso eu.
O Evaldo Cabral de Mello talvez não pudesse dar aula. Não sei se ele é formado em História. Alberto da Costa e Silva, o grande historiador das relações do Brasil com a África, um dos maiores historiadores vivos do Brasil, escreveu um livro magnífico: Um Rio Chamado Atlântico, que resgata as raízes africanas do Brasil, não pode dar aula de história da África. Por quê? Porque ele é diplomata. Ele se formou pelo curso do Itamaraty.
Sr. Presidente, estamos caminhando para a república corporativa do Brasil. Essa que é a verdade. Corporação atrás de corporação exige o seu nichozinho de atividade exclusiva em prejuízo, por exemplo, da universalidade do conhecimento.

Nenhum debate saiu disso. A indigência intelectual do Congresso foi reiterada pela senadora Ana Amélia (PP/RS), que, ao retrucar, simplesmente leu dois parágrafos do parecer de Flexa Ribeiro (PSDB/PA) cuja inconsistência já ataquei neste blogue.

É claro que, tendo em vista a Constituição da República e a jurisprudência do Supremo Tribunal  Federal sobre liberdade profissional, o projeto não poderia prosperar. No entanto, tendo em vista o diminuto compromisso com a constitucionalidade mostrado pelo Congresso Nacional, que já aprovou reserva de mercado para manicures, é possível até que mais esta aberração legislativa seja criada.
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html

Trata-se de uma aberração de ordem jurídica, mas também teórica: epistemologicamente, a história não pode ser considerada um condomínio fechado. Deveriam poder pesquisá-la e lecioná-la todos os pesquisadores de áreas correlatas. Ademais, mesmo levando em consideração que há historiadores sem diploma em histórias, outras disciplinas também produzem saberes sobre o passado, e "Dizer o que foi não é monopólio dos historiadores", como lembra este professor aos vinte minutos deste vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=m3h2m5l3Bcg

Essa radical recusa à interdisciplinaridade com a política de porteiras trancadas da ANPUH não seria um retorno a uma epistemologia oitocentista? Se o fato histórico é uma construção que depende, entre outros fatores, das perguntas postas pelo historiador, impedir que outros profissionais, que não os do artigo terceiro do projeto, possam exercer as funções do artigo quarto significa um fechamento de horizontes na produção do conhecimento histórico. O caráter autoritário do fetiche do diploma da ANPUH desnuda-se nesse ponto.

Nem mesmo o Estatuto da ANPUH parece-me corroborar o obscurantismo corporativista da Associação:
http://www.anpuh.org/estatuto

ARTIGO 5º - A ANPUH tem por objeto a proteção, o aperfeiçoamento, o fomento, o estímulo e o desenvolvimento do ensino de História em seus diversos níveis, da pesquisa histórica e das demais atividades relacionadas ao ofício do historiador.
Parágrafo primeiro - No cumprimento de seus objetivos, a ANPUH poderá por si ou em cooperação com terceiros:
(a) Desenvolver o estudo, a pesquisa e a divulgação do conhecimento histórico;
(b) Promover a defesa das fontes e manifestações culturais de interesse dos estudos históricos;
(c) Promover a defesa do livre exercício das atividades dos profissionais de História;

O "livre exercício" está sendo traído pela própria política da ANPUH. A não ser que se redefina "profissional de História" como somente aquele que atende ao artigo terceiro do projeto de lei do senador Paim. Porém, se houver essa redefinição, teremos um exercício privativo, e não "livre".

O vídeo que acima indiquei deixa bem claro que a preocupação da ANPUH se trata antes de ocupação de espaços de poder do que de alguma coerência teórica. A partir dos 26 minutos, o professor menciona tarefas que devem ser feitas depois da suposta aprovação do projeto: "quais seriam as particularidades do ato histórico por analogia ao ato médico", e como "fiscalizar" os outros profissionais que se ocupam do passado.

Por fim, os astros: a economista Renata Lins enviou-me um quadro comparativo sobre antigos projetos para regulamentação da profissão de astrólogo,  que já previam a terceirização das estrelas e planetas (com o astrólogo pessoa jurídica).
http://www.constelar.com.br/revista/edicao49/projetoslei.htm
No entanto, não se previu reserva de mercado, o que punha esses projetos anos-luz, em termos políticos e também epistemológicos, à frente do que a ANPUH pretende.

P.S.: Idelber Avelar chamou-me a atenção para esta afirmação no twitter:
https://twitter.com/perhappiness/status/271088997667856384
O presidente da ANPUH cita esse autor...

P.S. 2: Para quem não entendeu como é que eu, formado em Direito, posso não ter este afeto triste pelas regulamentações, já tratei um pouco da questão aqui:
http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/01/quem-domina-teoria-e-quem-domina-o.html

Pádua Fernandes

OBSERVAÇÃO: O texto seguinte menciona apenas de passagem a questão do projeto de lei de regulamentação da profissão do historiador, mas complementa as postagens apresentadas acima.


http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html

Polícia do pensamento e reserva de mercado:
de jornalistas a pedicures
(8 de agosto de 2012)
Pádua Fernandes

A incapacidade de pensar o país (ou de pensar tout court) é, provavelmente, um dos fatores que fazem com que o Congresso Nacional esteja se dedicando mais a atender grupos de interesses do que a vislumbrar horizontes mais largos. A amnésia militante do projeto de reserva de mercado para os historiadores é um exemplo sobre que já escrevi:
Memória como reserva de mercado, parte II
Memória como reserva de mercado, parte III
Memória como reserva de mercado, parte IV
[ver as postagens acima]

Esse tipo de medida legislativa é exemplar do modus operandi da classe política no Brasil: criar barreiras e impedimentos. O Brasil continua a ser uma grande fazenda improdutiva em que políticos querem criar seus currais e colocar porteiras. Cartórios, depois, registram as apropriações. O cartório, por sinal, é uma instituição paradigmática desse procedimento, pois é, ele mesmo, uma apropriação indevida do que é público.

Trata-se de uma conduta bem oficial. O atual ministro do trabalho, Brizola Neto, foi autor de um projeto de lei que tinha como fim regulamentar a profissão de DJ, para que só os que fizessem os cursos profissionalizantes pudessem trabalhar...

Tal proposta não seguiu adiante, e sim a do falecido senador e delegado do DOPS/SP Romeu Tuma (note-se a semelhança entre certos políticos profissionais da direita e da esquerda nesses assuntos).  No entanto, o então presidente Lula acertadamente vetou o projeto aprovado pelo Congresso Nacional, amparado no parecer da Advocacia-Geral da União, elaborado por Erico Ferrari Nogueira, que bem sustentou que "a proposição implica em reserva de mercado, sendo desprovido de razoabilidade estabelecer restrição à liberdade de exercício profissional nessa hipótese."

O infame Ato Médico, que deseja subordinar as diversas profissões da saúde aos portadores de diploma em medicina, é outra medida perigosa em gestão naquelas duas casas legislativas. Aconselho a leitura do blogue Não ao ato médico, que explica as entranhas do ataque do corporativismo médico contra a saúde no Brasil.

Historiadores, DJs, médicos - e os jornalistas? O Supremo Tribunal Federal já decidiu, na mesma linha da interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos a respeito do Pacto de São José da Costa Rica, que exigir diploma para a profissão de jornalista viola a liberdade de expressão. Qual a resposta parlamentar àquela decisão judicial? Em uma iniciativa contra os direitos humanos, o senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) apresentou projeto para restringir aquela liberdade. Sessenta senadores votaram a favor da restrição de um direito fundamental em prol do corporativismo de uma categoria profissional, o que mais uma vez demonstra o escasso compromisso tanto da direita quanto da esquerda profissionais com os direitos humanos.

Na notícia veiculada pelo Senado, lemos que o senador Magno Malta (PR-ES), conhecido por suas iniciativas contra a educação laica, e cuja dedicação à moralidade pública é amplamente conhecida, afirmou que o diploma significa a premiação do "esforço do estudo".

O estudo foi impedido? Alguns, menos inteligentes ou com menos boa-fé, preferiram ignorar que a decisão do STF não proibiu a existência de faculdades de jornalismo, e sim que passar por elas não é necessário. É evidente que as boas faculdades continuarão existindo, pois sua qualidade fará com que sejam procuradas. A politicamente poderosa indústria do ensino superior é que sairá perdendo, pois as faculdades em que não é necessário estudar para passar perderão a clientela forçada.

A exigência do diploma serviria para proteger os jornalistas contra as grandes empresas do ramo? Se isso fosse verdade, não teriam ocorrido abusos quando a exigência inconstitucionalmente estava em vigor. Maíra Kubík Mano, a quem muito respeito, lembrou que o projeto, na verdade, passa ao largo dos graves problemas que essa categoria de profissionais vem passando, e um deles é a fraude ao direito trabalhista realizada pelos conglomerados de comunicação:

"É impossível trabalhar como jornalista e não saber que o processo de “pejotização”, ou seja, de pagamento via Pessoa Jurídica, sem contrato formal de trabalho via CLT, é uma realidade terrível. Só que para se resolver isso não é preciso ter 100% dos jornalistas diplomados, e sim encarar as empresas de comunicação de frente."

Outro desafio seria regular os meios de comunicação, o que contrariaria os interesses das poucas famílias que os dominam no Brasil, bem como dos políticos que dominam as transmissoras e repetidoras por meio das concessões realizadas ao arrepio da Constituição da República. Este Congresso Nacional não está à altura da tarefa, ao que parece.

Ademais, a reserva de mercado atenderia os interesses das grandes empresas, ameaçadas pela mudança na economia da informação proporcionadas pela internet. Alexandre Haubrich assim entende, percebendo a exigência corporativa como uma restrição à cidadania, e essa restrição é favorável aos grandes meios de comunicação: "a exigência de diploma para ser admitido como jornalista é retrógrada e fora da realidade, servindo apenas como reserva de mercado nas grandes empresas de comunicação e como forma de exclusão que logo será atropelada pelo grande campo de inclusão que é a internet."

Li alhures que a obrigatoriedade de diploma se justificaria na cobrança de "responsabilidade social de quem informa". Essa posição repugna pelo indisfarçável elitismo. Não é vergonhoso pressupor que pessoas sem diploma não têm "responsabilidade social"? E que o diploma confere magicamente ética a seu portador? Maíra Kubík também discute esse preconceito, que é uma cândida forma de absolver as elites... Uma das pessoas que conheci que tinha mais consciência de responsabilidade social era catador de papel e iletrado, Severino Manoel de Souza.

Depois de termos tido um presidente sem diploma algum senão o de posse, e que não foi exatamente um fracasso político, é surpreendente ver o fetiche do diploma, na mais arcaica tradição do bacharelismo, ecoar até na boca e no teclado de pessoas que se consideram de esquerda.

Historiadores, DJs, médicos, jornalistas - por que não filósofos? O deputado federal Giovani Cherini (PDT/RS, que também deseja regulamentar a profissão de "naturólogo", deixando-a privativa para aqueles que detenham o diploma de naturologia, e fundou a Universidade dos Líderes, apresentou projeto para regulamentar a profissão de filósofo, que merece ser transcrito pela modesta técnica legislativa e pela singeleza argumentativa da fundamentação, que provavelmente o deputado julgou adequada à matéria que quer regular:

PROJETO DE LEI Nº, DE 2011 
(Do Sr. Giovani Cherini) 
Dispõe sobre o Exercício da Profissão de Filósofo e dá outras providências. 
O Congresso Nacional decreta: 
Art. 1º - O exercício, no País, da profissão de Filósofo, observadas as condições de habilitação e as demais exigências legais, é assegurado: 
a) aos bacharéis em Filosofia, diplomados por estabelecimentos de ensino superior, oficiais ou reconhecidos; 
b) aos diplomados em curso similar no exterior, após a revalidação do diploma, de acordo com a legislação em vigor; 
c) aos licenciados em Filosofia, com licenciatura plena, realizada até a data da publicação desta Lei, em estabelecimentos de ensino superior, oficiais ou reconhecidos; 
d) aos mestres ou doutores em Filosofia, diplomados até a data da publicação desta Lei, por estabelecimentos de pós-graduação, oficiais ou reconhecidos. 
e) aos que, embora não diplomados nos termos das alíneas a, b, c e d, venham exercendo efetivamente, há mais de 5 (cinco) anos, atividade de Filósofo, até a data da publicação desta Lei. 
f) aos membros titulares da Academia Brasileira de Filosofia e aos por ela diplomados em cursos de graduação bacharelado e licenciatura, mestrado e doutorado. 
Art. 2º - É da competência do Filósofo: 
I - elaborar, supervisionar, orientar, coordenar, planejar, programar, implantar, controlar, dirigir, executar, analisar ou avaliar estudos, trabalhos, pesquisas, planos, programas e projetos atinentes à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras; 
Il - ensinar Filosofia, Pensamento e Ideias, nos estabelecimentos de ensino, desde que cumpridas as exigências legais; 
III - assessorar e prestar consultoria a empresas, órgãos da administração pública direta ou indireta, entidades e associações, assim como a pessoas físicas, relativamente à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras; 
IV - participar da elaboração, supervisão, orientação, coordenação, planejamento, programação, implantação, direção, controle, execução, análise ou avaliação de qualquer estudo, trabalho, pesquisa, plano, programa ou projeto global, regional ou setorial, atinente à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras; 
Art. 3º - Os órgãos públicos da administração direta ou indireta ou as entidades privadas, quando encarregados da elaboração e execução de planos, estudos, programas e projetos socioeconômicos ao nível global, regional ou setorial, manterão, em caráter permanente, ou enquanto perdurar a referida atividade, Filósofos legalmente habilitados, em seu quadro de pessoal, ou em regime de contrato para prestação de serviços. 
Art. 4º - As atividades de Filósofo serão exercidas na forma de contrato de trabalho, regido pela Consolidação das Leis do trabalho, em regime do Estatuto dos Servidores Públicos, ou como atividade autônoma. 
Art. 5º - Admitir-se-á, igualmente, a formação de empresas ou entidades de prestação de serviço previstos nesta Lei, desde que as mesmas mantenham Filósofo como responsável técnico e não cometam atividades privativas de Filósofo a pessoas não habilitadas. 
Art. 6º - O exercício da profissão de Filósofo requer prévio registro no órgão competente do Ministério do Trabalho, e se fará mediante a apresentação de: 
I - documento comprobatório de conclusão dos cursos ou diplomas previstos nas alíneas a, b, c, d, e, f do art.1º, ou a comprovação de que vem exercendo a profissão, na forma da alínea e do art. 1º; 
II - carteira profissional. 
Parágrafo único. Para os casos de profissionais incluídos na alínea e do art. 1º, a regulamentação desta Lei disporá sobre os meios e modos da devida comprovação, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, a partir da data da respectiva publicação. 
Art. 7º - A Academia Brasileira de Filosofia, com sede na cidade do Rio de Janeiro, é a representante da filosofia e língua filosófica nacionais. 
Art. 8º - O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 60 (sessenta) dias. 
Art. 9º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. 
Art. 10º - Revogam-se as disposições em contrário. 
Sala das Sessões, em de setembro de 2011. 
Deputado Giovani Cherini 
JUSTIFICATIVA 
A profissão de filósofo, uma das atividades mais importantes para nosso país, face sua evidente vinculação à preservação e expansão do pensamento e das ideias em território nacional, ainda não foi disciplinada 
em nosso país. De fato, tal situação gera irreparáveis danos à constituição e robustecimento do pensamento filosófico no Brasil e, mais ainda, a sua correta difusão para as gerações vindouras. 
Assim, parece-nos evidente que o Estado pode e deve agir no sentido de regular o exercício da profissão de Filósofo no País, estipulando as condições de habilitação e as exigências legais para o regular exercício da mesma, além de seu âmbito de competência. Tal medida é de suma importância, pois se de um lado retirará do mercado de trabalho as pessoas não habilitadas, de outro presta justo reconhecimento do Estado a esta milenar profissão; em benefício de toda a sociedade brasileira Academia. 
Ademais, tal proposição prevê o registro dos profissionais junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, o que evitará eventuais precarizações das relações de trabalho. Por fim, o presente Projeto de Lei dá o devido reconhecimento à Academia Brasileira de Filosofia, entidade declarada de utilidade pública federal que reúne os grandes filósofos brasileiros, como o repositório do pensamento filosófico nacional.

O deputado federal Efraim Filho (DEM-PB) requereu a realização de audiência pública para discutir o projeto sobre a "profissão milenar", tendo em vista a ameaça à liberdade de pensamento. O requerimento foi aprovado em nove de maio deste ano. Creio que ela ainda não se realizou.

Espanta, no meio de tanta matéria para o pasmo e o horror, o destaque dado no projeto à Academia Brasileira de Filosofia, que conta, entre seus cinquenta e cinco luminares, com nomes tocados por Minerva como Merval Pereira, um dos autores que ela compartilha com a Academia Brasileira de Letras. Por sinal, seguindo a tradição aduladora das academias nacionais, a ABF reconheceu recentemente os talentos filosóficos de Michel Temer, atual vice-presidente.

A ABF teve a ideia de etiquetar livros de Heidegger para advertir o leitor de seu conteúdo.

Aqui, como em outros casos - a reserva de mercado para historiadores e para jornalistas bem o ilustra - desvela-se um desejo de fundar uma polícia do pensamento, para que na esfera pública só possam circular ideias devidamente diplomadas e etiquetadas. É provável que Romeu Tuma votasse a favor do projeto de Cherini, se ainda vivesse.

Historiadores, DJs, médicos, jornalistas, filósofos - seguindo a mesma lógica, por que não cabeleireiros, barbeiros, esteticistas, manicures, pedicures, depiladores e maquiadores? Os congressistas, de fato, resolveram exigir diploma para tanto... Somente tesouras diplomadas devem cortar cabelo? Serão elas mais afiadas?

Esse projeto aprovado pela atual legislatura tornou-se a  lei n 12.592, de 18 de janeiro de 2012, e foi vetado parcialmente pela presidenta Dilma Rousseff, com toda razão. Mais um inegável sinal de que os congressistas querem, policialescamente, controlar tanto o que está dentro das cabeças quanto o que está fora delas.

P.S.: Em relação à teoria do direito, também escrevi uma nota sobre "polícia do pensamento", "Quem domina teoria e quem domina o direito?", em comentário a considerações de Abel Barros Baptista.





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