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29 de setembro de 2013

Comentários de Bruno Flávio Lontra Fagundes sobre o Projeto de Lei 4699/2012

O professor Bruno Flávio Lontra Fagundes, doutor em História pela UFMG, tem participado da discussão virtual a respeito do Projeto de Lei sobre regulamentação da profissão do historiador (PL 4699/2012) - por exemplo, no site Café História. Ele apresenta aqui algumas considerações sobre esse tema, abordando um aspecto pouco discutido: a formação que os historiadores devem ter, para poderem contribuir em outras áreas, além do ensino formal e da pesquisa.



Bruno Flávio Lontra Fagundes
(Professor do Curso de História – UNESPAR – Campus de Campo Mourão/PR)

O PL da profissão de historiador e as propostas de mestrado profissional em História são sintomáticos de um processo, a meu ver, que vem de mais longe, e que, agora, sofre questionamentos naturais em sociedades que se transformam. Esse processo remonta ao tempo de institucionalização da História como disciplina acadêmica no Brasil. Em regra, primeiramente cursos de formação de professores, depois pesquisadores... e agora, numa sociedade que não aceita ver suas memórias e lembranças desprezadas? Com o tempo a História foi se mostrando criteriosa e construtora de um conhecimento sobre o passado que não se confunde com lembrança do passado. Lembrar não é conhecer! Os objetos da História estão enraizados na própria relação que estabelece com aqueles que a consomem. Essa relação durante décadas não havia sido questionada. Agora está. Não isentos de questionamentos, o PL da regulamentação e os mestrados profissionais encarnam demandas de um tempo transformado que requer de nós, historiadores, pensar em rever o que já nos garantiu, de algum modo, prestígio público e hoje já não nos garante muita coisa. Numa sociedade onde na escola há boas iniciativas – mas isoladas – com relação à matéria História, onde ela “não faz sentido”, acrescida da profusão de memórias muito esquentadas pelas mídias, nesse contexto, historiadores – generalizo – se vêem meio que “perdidos”, substituídos. Alunos neófitos chegados à academia histórica hesitam abandoná-la, porque ela não só promete muito pouco em oportunidade de trabalho, como também pouco seduz, talvez até porque promete pouco. Como a História disciplina pode ser desejada num contexto de inflação de memória? Não é questão de “atender demandas” como se cursos fossem “balcão de negócios” – não é essa a única maneira de equacionar o que seriam essas “demandas sociais por história”. Mas demandas por horizontalidade na abordagem de questões da realidade histórica que podem ser informadas pelo que surja do debate com e da participação na sociedade. Não só acatar demandas, mas influir sobre elas, de modo que possam gerar lugares novos de trabalho que se somem à tradicional ocupação docente. E sem perder a “criticidade”, esse quase-slogan do empenho profissional do historiador. Se não sabemos dizer exatamente como fazer isso, a meu ver o PL da regulamentação é iniciativa meio que desesperada de colegas que sabem que precisam fazer algo, mas que, ainda não sabendo como, expelem no mundo iniciativas esperando “ver no que vai dar”. Pessoalmente tenho muitas reservas ao projeto de regulamentação, mas o apóio porque é uma atitude.

No entanto, no Brasil há cursos de História em vários lugares com realidades muito diferentes, com distribuição de recursos desigual, cursos pequenos, sem prestígio, mas que nunca conseguem dar suas soluções próprias, pois sempre pautados pelo princípio hegemônico que identifica qualidade com pesquisa acadêmica restritivamente, o que constrange quase tudo a ela, inibindo parte da finalidade dos cursos com, por exemplo, mais genericamente falando, “projetos de educação para a História” – onde há pesquisa, sempre, mas não a pesquisa como um fim em si mesmo, mas pesquisa como meio. Trucidados por imposições diárias de produtividade, a pesquisa acadêmica com um fim em si mesma força os profissionais a se dedicarem a ela com quase exclusividade, e uma vez na pós-graduação, só há tempo para ela. Com o critério soberano da pesquisa acadêmica, vão sendo inibidos, por exemplo, projetos de extensão, há décadas reduzidos a “cursos de reciclagem” de professores do ensino médio. Desenvolver bons projetos na graduação – com Ensino e Extensão, por exemplo, onde se pode desenvolver uma expertise – é muito arriscado, porque as exigências ligadas à pesquisa acadêmica são draconianas. Quando colegas enfiados em cursos noutras realidades precisam estruturar um curso novo, quase sempre só conseguem ter a cabeça na pesquisa e na pós-graduação, reproduzindo um padrão de curso que, a meu ver, necessita ser, senão revisto, combinado com outros padrões. Aí, a velha história: a graduação, lugar onde boas iniciativas podem ser desenvolvidas e serem valorosas, fica desprezada, praticamente se limitando a preparar alunos para a seleção da pós-graduação.


Porque o sistema forçou criar um padrão de apuração da qualidade desconsiderando várias realidades do país onde há cursos de História variados com possibilidades de atuação também variadas. A realidade mudou, mas nossos cursos de História permanecem! Se o PL da regulamentação e os mestrados profissionais forçarem um movimento de revisão de nossos cursos, excessivamente cativos da pesquisa acadêmica strictu sensu, já terá sido bom: o historiador não é mais apenas professor, ele pode trabalhar com memória e museus, bens culturais e patrimônio, assessorias e consultorias em turismo, memória e patrimônio, mídias, arte e cultura etc. Qual de nossos cursos ajuda na formação para isso? Isso tem um custo não baixo. Colegas ligados a núcleos regionais de ensino no Paraná, onde sou professor, chegam a dizer, depois de conhecerem o mercado de trabalho em escolas da rede pública, que mudanças urgentes são “questão de sobrevivência” de cursos. Essa versão pode ser um pouco “narrada no modo trágico”. A pergunta que nos inquieta a cada vestibular é: “foram quantos candidatos para História?” Depois, começado o curso, começa a refrega diária para que alunos não abandonem o curso no meio do caminho! Há cursos de História em cidades brasileiras do interior onde prefeituras devolvem rubricas orçamentárias por falta de projetos - inclusive na área de memória e patrimônio – porque faltam profissionais para fazê-los. Faltam profissionais para fazer projetos de memória e patrimônio em cidades que têm cursos de História! Criticáveis ou não, o PL e os mestrados profissionais – mais o PL – atacam isso: formar para trabalhar, lugar para trabalhar! J Malerba questiona se novos cursos precisam ser acadêmicos, Keyla Grinberg sugere a inoperância – palavra minha – de nossos cursos para formar novas linhagens – palavra minha - de historiadores, Luciano Figueiredo fez já considerações de um mercado de caráter jornalístico para historiadores em revistas de História criteriosas vendidas em bancas de jornal. É limitador esperar trabalhar junto à sociedade em atuações restritivamente acadêmicas pela prática docente. Há cursos e cursos de História no Brasil e sua grande maioria não tem nem de longe o perfil dos cursos federais de História localizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre etc., onde o aluno tem como expectativa maior ser pós-graduado. Se quiser ensino, que vá para as FAEs, ou se quiser qualquer outra coisa mais, que faça autodidatamente!

Quando cursos de História querem combinar pesquisa, extensão, ensino, o que ajuíza de sua intenção é, sobremaneira, a pesquisa acadêmica, reproduzindo uma hierarquia institucional que alimenta o status quo intra-universitário! Há depoimentos de professores que reclamam de alunos que querem mudar do PIBID para o PIBIC porque “dá mais prestígio”. É de trabalho para formados em História de que se trata, repito! O PL está longe de ser ideal, mas é, bem ou mal, uma atitude, e os mestrados profissionais vêm para cobrir uma falta de formação para outras atuações! Não vivemos mais o tempo em que cursos viviam da mística do intelectual guia da sociedade, padrão de crítica e de criticidade. A sociedade, bem ou mal, está politizada, e quer ser sujeito social de fato. Se nossos cursos fossem mais permeáveis a demandas de história/memória que andam por aí, talvez não houvesse necessidades de PL e nem de mestrados profissionais. Há iniciativas importantes. O departamento de História da UFPR abriu, em 2009, um curso de bacharelado noturno em História - Memória e Imagens, de 4 anos.  Garantida a formação consistente de parte da grade curricular do curso acadêmico, desde o primeiro período o aluno trabalha com a vertente da imagem, vídeos, etc. e/ou da memória, museus, casas de memória etc., e no terceiro ano faz a opção definitiva por "habilitações” que os encaminham para oficinas de produção de sites, video-documentários, exposições, etc. Vão fazer formação prática para tentar trabalho no mercado de vídeo e de instituições de patrimônio histórico com o conhecimento que podem oferecer. O curso de História da UFRN fez parceria com a TV Universitária: quando, para matérias e/ou programas da grade de programação, precisarem de alguma pesquisa histórica, recrutem alunos do curso de História para fazerem-na. É outro tabu: por que não discutirmos um “lado prático da História”?! “O que fazer com História depois de formado?”, pergunta-se, parafraseando o "para que serve a História?" de Marc Bloch. Aliás, quase nenhum de nós conseguiu convincentemente responder a essa pergunta até hoje!


É preciso ter pesquisa acadêmica, é preciso ter a avaliação dos pares, mas não só: é preciso abrir para o diálogo com os não-formados em História baseado – aceitemos ou não – na ideia de que eles também podem “fazer história”. E fazem de fato e não há motivos para estarmos afastados de seus juízos e do diálogo com eles. Há bastante, mui-tos, a maioria talvez de alunos que não vai se formar para ser pós-graduado ou irem para o mercado docente de nível superior. Nosso padrão de curso é meio esquizofrênico, deslocado da realidade da grande maioria do país e alheio a outras oportunidades de atuação. Se nossos cursos e critérios de julgamento se renovassem, creio que muitos outros cursos seriam valorizados. Se do PL e de outras atitudes vierem outras atitudes, já terá valido bastante . Não sabemos convencer senão a nós mesmos. A bola da vez é o “diálogo social”, como foi o slogan da última ANPUH. Por ele talvez possamos encontrar junto à sociedade legitimidade, importância e reconhecimento de nosso valor profissional que nos faça ser desejados. Não é de se supor que na sociedade só existam sujei-tos avessos a argumentos, ponderações e versões do passado que os historiadores têm a oferecer. Porque se certos usos do passado são condenáveis, também o é uma recusa de participar em razão de justificativas virtuosas da ciência e do cuidado metodológico, que, no fundo, podem ser argumento de salvaguarda de lugares e posições sociais em nome de uma “autonomia” muitas vezes apanágio de privilégios. Porque o argumento de colegas que alegam corporativismo e criação de uma casta com o PL é meia verdade. Casta e corporativismo já existem na academia. Não é fazer diálogo social que ponha em risco o “dever de memória” ou endossem os usos do passado que promovem inverdades ou mistificações memorialistas da sociedade em benefício de interesses particularistas excludentes. Não! Mas diálogo que seja de igual para igual, por meio de participação diversa na sociedade, onde profissionais de História se empenhem em se mostrarem, convencerem sujeitos com suas versões e narrativas do passado. Como toda política, em certas horas perderá, em outras vencerá. Diálogo, trabalho e participação social. Embora armem historiadores com material para isso, nossos cursos favorecem muito pouco essa ida ao diálogo e à participação. Essa é que é a verdade!


Sobre o autor:
Bruno Flávio Lontra Fagundes, bacharel e licenciado em História, 1988, mestre em Estudos Literários, 2000, doutor em História, 2010, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de História em diferentes atuações, como planejamento e organização de arquivos privados, assessoramento a políticas de patrimônio histórico-cultural, participação em edição crítica de textos históricos, ensino de História de nível médio e superior, assessoria/consultoria/pesquisa para reforma de exposições permanentes de museus e centros de cultura, pesquisa autônoma, micro-empresa na área de Memória, divulgação de conhecimento histórico. Atualmente é professor adjunto do curso de História da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), campus de Campo Mourão (PR). 

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