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25 de setembro de 2013

Entrevista de Roberto de Andrade Martins sobre o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador (dia 15/08/2013)

Abaixo transcrevemos entrevista concedida por Roberto de Andrade Martins, através de e-mail, a Sérgio Campos Gonçalves, Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), campus de Franca. A entrevista, com data de 15 de agosto de 2013, deveria ser publicada, mas não o foi. Fica aqui o seu registro.


"Estou lutando pelo direito de outras pessoas que queiram se dedicar seriamente à pesquisa e ao ensino de História e que não possuem nem querem ter um diploma em História."

Roberto de Andrade Martins

Sérgio Campos Gonçalves (SCG) - Qual sua visão sobre o projeto de profissionalização? Com quais pontos do projeto concorda, se é que concorda com algum, e quais são os mais problemáticos, em sua opinião?

Roberto de Andrade Martins (RAM) - Concordo que os historiadores têm o direito de contar com uma legislação que regulamente a profissão de historiador. Mas não concordo com a forma da atual proposta. Minha visão é que o projeto foi mal redigido. Pessoas que defendem o Projeto de Lei 4699/2012 sobre a profissão do historiador, como os membros da Diretoria da ANPUH, afirmam que o objetivo dessa proposta é apenas delimitar quem poderia ser chamado "historiador"; e que não há a intenção de proibir ninguém de se dedicar à história. Não é isso o que o texto do projeto de lei afirma. Ele restringe o exercício das atividades de historiador aos portadores de diploma em História; e apresenta uma enorme lista de prerrogativas exclusivas dos portadores de diploma em História, tais como "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos". Ou seja: apenas portadores de diploma em História podem elaborar trabalhos sobre temas históricos - sem exceção. Da forma como foi redigido, o projeto de lei é extremamente restritivo. Para corresponder àquilo que a Diretoria da ANPUH apregoa, ele precisaria ser completamente reformulado. Poderia, por exemplo, adquirir uma forma semelhante à Lei nº 12.592, de 18 de janeiro de 2012, que dispõe sobre a profissão de Cabeleireiro, Barbeiro, Esteticista, Manicure, Pedicure, Depilador e Maquiador, a qual não estabelece nenhuma proibição ao exercício dessas atividades. 


Em minha opinião, os pontos mais problemáticos do projeto de lei são os seguintes: 

(1) Ele não diferencia entre licenciados e bacharéis, violando assim a legislação educacional brasileira, que permite apenas aos licenciados (que possuem formação pedagógica) o exercício do magistério nos níveis fundamental e médio. Também não diferencia os diversos níveis de formação, e poderia levar ao absurdo de que uma pessoa apenas com graduação (licenciatura ou bacharelado) poderia exigir o direito de lecionar no ensino superior (incluindo mestrado e doutorado) sem ter título de pós-graduação. Seria necessário mudar a redação do projeto, para adequá-lo à legislação e às normas universitárias. Essa adequação precisa aparecer explicitamente no texto do projeto de lei.

(2) O texto do projeto, tal como está, não reconhece os direitos de pessoas que, embora sem diploma em História, já exercem atividades na área de História há vários anos. Quase todas as leis de regulamentação profissional incluem um artigo ou parágrafo que indica que as pessoas que, na data de publicação da lei, já se dedicam comprovadamente a essas atividades há pelo menos X anos, têm os mesmos direitos. Sem esse tipo de acréscimo, pessoas como os cientistas sociais que trabalham no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas não poderiam mais se dedicar à pesquisa e ensino de História, por exemplo. Essa correção precisa aparecer explicitamente no texto do projeto de lei. 

(3) Mesmo se for feita a correção indicada acima, o projeto de lei proibiria, no futuro, pessoas sem diploma em História de elaborar "trabalhos sobre temas históricos" (Artigo 4, alínea VI). Isso é inaceitável. Deve ser garantida a liberdade de pensamento e expressão, e isso inclui o direito de qualquer pessoa, com ou sem título em História, de estudar e elaborar trabalhos sobre temas históricos. Outro item do projeto de lei restringe aos portadores de diploma em História a "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História" (Artigo 4, alínea II). Isso também é inaceitável. Não pode haver proibições desse tipo. Qualquer pessoa deve poder, livremente, organizar informações e publicar livros sobre qualquer tema de História, ou sobre qualquer outro assunto. Muitos importantes historiadores brasileiros se pronunciaram contra o projeto de lei, sob este aspecto.

(4) O projeto de lei não leva em consideração a existência de tipos específicos de estudos históricos que não fazem parte do domínio de competência dos diplomados em História. Um exemplo simples é a história da filosofia. Nenhum curso de graduação ou pós-graduação em História, no Brasil, tem disciplinas sobre história da filosofia, nem desenvolve o treino intelectual necessário para a pesquisa e o ensino nessa área. Um historiador da filosofia precisa compreender profundamente o pensamento de cada pensador que estuda, diferenciando inclusive as diferenças e nuances existentes em diversas obras e fases do mesmo filósofo. É claro que um historiador, sem treino em história da filosofia, poderia estudar vários aspectos sociais da filosofia (por exemplo, as relações sociais entre os professores e departamentos de filosofia em vários países); mas não poderá desenvolver, com competência, uma história conceitual da filosofia, por lhe faltar treino para isso. Problemas semelhantes são encontrados no estudo, pesquisa e ensino de todos os estudos históricos referentes às diversas áreas de conhecimento humano (medicina, ciências exatas, arte, literatura, direito, etc.). A história conceitual da matemática exige um conhecimento de matemática, e assim por diante. O projeto de lei precisaria ser corrigido para distinguir esses casos. Não se pode exigir diploma em História para desenvolver pesquisas e para ensinar sobre a história das diversas áreas do conhecimento.

Apontei estes e outros pontos problemáticos, de forma mais detalhada, nas diversas páginas deste blog: 


SCG - Se aprovado, como tal projeto poderia afetar as pessoas que, a exemplo do senhor, que é membro do Grupo de Pesquisa sobre História, Teoria e Ensino de Ciências da USP,  trabalham diretamente com a história, mas em outros ramos, como no da história da ciência?

RAM - Do modo como o projeto de lei foi redigido, ele é muito restritivo. Se fosse aprovado, ele proibiria pessoas sem diploma em História de desenvolver atividades como o ensino de história, em todos os níveis. Como o texto do projeto de lei não estabelece qualquer exceção, eu próprio não poderia mais ministrar aulas sobre história da ciência. Algumas pessoas dizem que bastaria mudar o nome da disciplina, dando-lhe algum título como "evolução dos conceitos científicos". Parece-me, no entanto, que tal tipo de "jeitinho brasileiro" é indigno e inaceitável. Não há precedentes, em todo o mundo, de proibições desse tipo. Fora do Brasil, sou e continuarei a ser um "historian of science", ou "historien de la science", e no exterior tenho o direito de ministrar disciplinas com o nome "history of science", ou "histoire des sciences". Por que motivo não poderia fazer o mesmo no meu país? Será que preciso pedir asilo político e partir para o exílio? 

Se o projeto de lei for aprovado, com sua redação atual, os atuais historiadores da ciência que não possuem diploma em história também ficarão proibidos de fazer a "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História" (Artigo 4, alínea II). Não poderei mais organizar informações para publicar trabalhos sobre história da ciência, que é um tema histórico. Talvez possa publicar trabalhos sobre história da ciência se as informações estiverem desorganizadas, não tenho certeza... Também não poderei organizar informações sobre história da ciência para apresentar em eventos, nem participar da própria organização de eventos de história da ciência. Tudo isso me parece absurdo. É claro que também não poderei mais elaborar projetos de pesquisa, pois o texto do projeto de lei restringe aos portadores de diploma em História atividades como "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos" (Artigo 4, alínea VI). Qualquer tema histórico, sem exceção. Só quem não leu com atenção o texto do projeto de lei, ou quem não sabe ler, poderia afirmar que o projeto não é proibitivo. Se aprovado, ele proibirá pessoas sem diploma em História de elaborar projetos e trabalhos sobre qualquer tema histórico.

SCG - Se aprovado, como se daria a continuidade do trabalho de historiar áreas específicas distintas da história, como a física, sobre a qual o senhor se debruça, com as quais os historiadores de formação normalmente têm pouca familiaridade?

RAM - Se o projeto de lei 4699/2012 for aprovado, com sua redação atual, a história conceitual de todas as áreas científicas deixaria de existir em nosso país, na prática. Os atuais historiadores da arte, da educação, da medicina, da filosofia, da linguística, da literatura e das outras áreas de conhecimento que não possuem diploma em História ficariam impedidos de continuar suas atividades; e os meros diplomados em História não poderiam substitui-los de modo competente, por lhes faltar o conhecimento específico dessas áreas do conhecimento. Como um historiador sem conhecimento científico poderia analisar os debates ocorridos durante o desenvolvimento da mecânica quântica? Como um historiador sem conhecimento científico poderia discutir as diferenças e semelhanças entre a teoria da relatividade de Einstein e as teorias de éter? Como um historiador sem conhecimento científico poderia analisar o que ocorreu durante a revolução astronômica dos séculos XVI e XVII? É claro que muitos historiadores poderiam responder: essas coisas não interessam, não precisam ser estudadas. Muito bem: podem não interessar a algumas pessoas. Mas será que outras pessoas devem ser proibidas de pesquisar temas históricos como esses? No resto do mundo, a história conceitual da física e das demais áreas de conhecimento é um empreendimento acadêmico digno, respeitado. Por que seria rejeitado no Brasil? Isso não pode acontecer. Isso não vai acontecer. O projeto de lei 4699/2012 não pode ser aprovado em sua forma atual. Precisa ser corrigido, ou rejeitado. 

SCG - O que motivou a tradução e divulgação de manifestos estrangeiros sobre a questão no blog? Como isso tem sido recebido por aqui?

RAM - Muitas pessoas, infelizmente, não possuem uma visão suficientemente ampla daquilo que ocorre no mundo todo. Sem essa perspectiva internacional, os debates sobre o projeto de lei adquirem uma aparência puramente local e as opiniões a favor e contra o projeto parecem todas ter o mesmo peso. Por isso me pareceu importante divulgar documentos que mostram como a situação é vista no exterior. Os que defendem o Projeto de Lei 4699/2012 sobre a profissão do historiador com sua redação atual procuram desqualificar os opositores, como os historiadores da arte, da educação, das ciências, etc. É importante que fique muito claro que eles estão se opondo a uma tradição internacional centenária. É importante que fique claro que, se o projeto de lei for aprovado, o Brasil será o único país do mundo a exigir diploma em História para o desenvolvimento de qualquer trabalho sobre temas históricos. Os historiadores de outros países que estão cientes desse projeto de lei ficam atônitos, incrédulos e depois horrorizados, quando compreendem o teor da proposta. Além dos documentos que temos traduzido e divulgado, recebemos comentários pessoais de diversos pesquisadores do exterior que se mostram indignados com essa tentativa de cercear a liberdade da pesquisa e do ensino sobre temas históricos. As manifestações estrangeiras têm, felizmente, produzido um forte impacto e um ótimo efeito. Muitas pessoas que nem mesmo paravam para pensar sobre o assunto estão agora refletindo mais cuidadosamente sobre o texto do projeto de lei e percebendo seus problemas. Isso tem ocorrido não apenas no meio acadêmico, mas também no Congresso Nacional. Os deputados federais, sobre quem recai atualmente a responsabilidade de julgar a validade desse projeto de lei, estão agora cientes de que, se essa proposta de regulamentação for aprovada em sua forma atual, isso terá repercussões internacionais indesejáveis. Considero, portanto, muito positivo o efeito da divulgação desses manifestos internacionais.  

SCG - Para contextualizar a entrevista, eu precisaria de um breve texto biográfico que evidenciasse, em sua trajetória profissional, a convergência para a história.

RAM - Desde criança, gostava muito de ler e "devorava" muitos livros por mês. Quando estava no ensino médio, encantei-me com física, química, biologia, filosofia e história das ciências. A partir dos 15 anos de idade comecei a ler muito, por conta própria, sobre esses assuntos. Resolvi fazer graduação em física, mas durante a graduação fiz disciplinas de filosofia da ciência e biologia, além de dedicar meus fins de semana a ler muito sobre história e filosofia das ciências, além de outros assuntos. Enfim: tinha uma grande curiosidade intelectual. Por qual motivo comecei a concentrar minha atenção principalmente na história das ciências? Não saberia responder. Isso foi acontecendo gradualmente. Em torno dos 30 anos de idade essa escolha já estava bem definida. Fiz meu doutorado em filosofia da ciência. Minha formação se deu, essencialmente, através de leituras. À medida que publicava trabalhos no Brasil e no exterior, fui adquirindo certa respeitabilidade. Há mais de 30 anos tenho bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq (atualmente, no nível 1-B), com projetos de história da ciência. Aposentei-me na Unicamp em 2010, o que me dá muita liberdade. Por isso, esse projeto de lei, se aprovado, não poderá me atingir. Estou lutando pelo direito de outras pessoas que queiram se dedicar seriamente à pesquisa e ao ensino de História e que não possuem nem querem ter um diploma em História. 

Roberto de Andrade Martins

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