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8 de outubro de 2013

Crítica de Roberto de Andrade Martins à proposta de emenda da ANPUH e da SBHC ao projeto de lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

A Associação Nacional de História (ANPUH) e a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) realizaram um acordo e apresentaram uma nova proposta de emenda ao PL 4699/2012. Essa proposta é inaceitável. Veja os motivos abaixo.


No dia 24 de setembro a Associação Nacional de História (ANPUH) divulgou em seu site (e também no Facebook) que havia feito um acordo com a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e elaborado uma proposta conjunta de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4.699/2012 de regulamentação da profissão de historiador. 

No dia 02 de outubro, a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) enviou um informe aos seus associados, confirmando e justificando o acordo feito com a ANPUH. Até o momento em que este documento estava sendo redigido (08/10/2013), no entanto, estranhamente não constava nenhuma notícia sobre o assunto no site da SBHC. Apenas a ANPUH divulgou esse comunicado da SBHC, no dia 04/10:
http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=4341

Veja a seguir algumas críticas a respeito dessa proposta conjunta ANPUH + SBHC. O texto completo da proposta dessas associações está reproduzido ao final desta postagem. 

“Sou contra a proposta da ANPUH e da SBHC, porque representa uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica.” Roberto de Andrade Martins

Roberto de Andrade Martins

Além de inúmeros problemas em seus detalhes, a proposta da ANPUH e da SBHC apresenta os seguintes defeitos gravíssimos:

(1) Dificultaria, no futuro, o desenvolvimento da História das Ciências em nosso país - fato com o qual a SBHC deveria se preocupar.
(2) Mantém o caráter corporativo da proposta anterior, estabelecendo uma reserva de mercado para pessoas que podem não ter qualificação para desempenhar as funções que lhes serão privativas.
(3) Continua a restringir a liberdade de desenvolver atividades na área de História, como o projeto anterior, apesar do que afirmam a ANPUH e a SBHC.

Descrevo abaixo, de modo mais claro, esses pontos.

(1) A proposta da ANPUH e da SBHC dificultaria, no futuro, o desenvolvimento da História das Ciências em nosso país - fato com o qual a SBHC deveria se preocupar.

O acordo entre a ANPUH e a SBHC modificou a proposta do Projeto de Lei 4699/2012, de modo a incluir entre os "historiadores" (definidos no Artigo 3) não apenas as pessoas que possuem diploma de graduação ou pós-graduação em História, mas também os que efetivamente se dedicam à História há pelo menos 5 anos, e os que tenham pós-graduação em programas nos quais exista "linha de pesquisa dedicada à História". É um avanço em relação à redação original, mas um avanço muito tímido. 

Suponhamos que um professor universitário de Literatura, de Arte, de Astronomia, de Matemática, de Direito ou de qualquer outra área, que não preenche esses requisitos, queira começar a se dedicar (depois da aprovação dessa malfadada lei) à história de sua disciplina. A única possibilidade de ser aceito como "historiador" e poder desempenhar atividades de historiador é fazer uma pós-graduação em História tout court, ou em programa de pós-graduação que tenha linha de pesquisa histórica. Não é prevista qualquer outra possibilidade. Mesmo se ele tiver 50 anos de idade e reconhecida trajetória acadêmica em sua área, precisará voltar aos bancos escolares para obter um diploma que lhe permita se dedicar à história de sua disciplina. Isso me parece INACEITÁVEL e representaria uma barreira que prejudicaria muito, no futuro, o desenvolvimento da história das ciências no Brasil. 

Podem me responder que seria, de fato, desejável que essas pessoas adquirissem uma formação específica história para poderem se dedicar à história de suas disciplinas. Muito bem: convençam essas pessoas, mas não as obriguem a fazer uma pós-graduação, se elas não quiserem. As pessoas devem ter liberdade para seguir ou não aquilo que outras pessoas lhes recomendam fazer. 

Por outro lado, é evidente que a proposta da ANPUH e da SBHC estabelece uma formalidade ridícula, que não tem nada a ver com a competência acadêmica. De acordo com essa proposta, uma pessoa que conclua uma pós-graduação em um programa de mestrado ou doutorado no qual exista uma "linha de pesquisa dedicada à História" adquire, ipso facto, o direito de se registrar como historiador e desempenhar todas as atividades que são exclusivas dessa profissão (podendo inclusive se candidatar a cargos públicos de historiador, etc.). Mas a proposta da ANPUH e da SBHC apenas indicou uma condição do programa de pós-graduação, e não da pessoa diplomada por esse programa. Suponhamos que um programa de pós-graduação em Física tenha uma linha de pesquisa sobre História da Física. Qualquer pessoa diplomada por esse programa, mesmo se apenas tiver estudado Teoria das Cordas, poderá se registrar como historiador e exercer legalmente todas as atividades previstas no Artigo 4 do projeto de lei. Não é absurdo? Por outro lado, se um programa de pós-graduação, por acaso, não tiver uma linha de pesquisa com o nome "história", ou "história de...", os seus mestres e doutores não terão qualquer direito de serem considerados historiadores, mesmo se tiverem feito diversas disciplinas históricas e/ou desenvolvido sua pesquisa sobre um tema histórico. Outro absurdo. 

(2) A proposta da ANPUH e da SBHC mantém o caráter corporativo da proposta anterior, estabelecendo uma reserva de mercado para pessoas que podem não ter qualificação para desempenhar as funções que lhes serão privativas.

De acordo com essa proposta, 
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou  empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.
Tal registro é permitido aos "historiadores" definidos pelo Artigo 3 do projeto de lei, que já foi comentado acima.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados. 

Todas as entidades que prestam serviço em História (por exemplo: museus, arquivos e outras) seriam obrigadas a ter "historiadores" (definidos no Artigo 3) em seus quadros, ou pagar serviços prestados por tais "historiadores". 

O Censo Demográfico do Brasil de 2010 identificou 75 mil pessoas com diploma em História.

Todos esses 75.000 podem se registrar como "historiador", de acordo com essa proposta, e ocupar cargos em museus, arquivos e outras instituições, tenham ou não um treino adequado para desempenhar essas atividades. Devemos nos lembrar que uma grande proporção deles fez licenciatura em História. Todos esses 75.000 (além de outros que se diplomaram depois de 2010) poderão prestar, por exemplo, "assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação", mesmo se nunca estudaram como se faz isso. 

Além disso, com a nova redação dada através do acordo entre ANPUH e SBHC, os novos cargos serão disputados também por historiadores da ciência, da educação, da arte, do direito, da filosofia, etc. Todos terão os mesmos direitos a participar dessa reserva de mercado, tenham ou não um treino adequado para desempenhar essas atividades

Essa proposta é absurda. Ela não pode contribuir para a melhora da qualidade dos serviços em história, e sim para a criação de vagas que ficarão à disposição de muitas pessoas incompetentes. 

(3) A proposta da ANPUH e da SBHC continua a restringir a liberdade de desenvolver atividades na área de História, como o projeto anterior, apesar do que afirmam a ANPUH e a SBHC.

Há pessoas que continuam a afirmar que essa proposta (como a antiga) não proíbe ninguém de se dedicar a atividades históricas. Pode-se questionar a inteligência ou a honestidade intelectual dessas pessoas. De fato, vamos analisar o texto:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei.

Será tão difícil assim compreender esse texto? Vejam bem, o Artigo 2 não afirma "É livre o exercício da atividade de historiador", e sim "É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei."

Essa frase pode ser reescrita, sem mudança de significado, da seguinte forma: "Aqueles que atendam às qualificações e exigências estabelecidas nesta lei poderão exercer a atividade de historiador." Há, portanto, condições para exercer a atividade de historiador. Quais são essas qualificações e exigências? As que estão estabelecidas no próprio projeto de lei, que determina no seu Artigo 3 quem pode ser considerado um "historiador". E somente eles podem exercer a atividade de historiador. Que atividade é essa? Tudo aquilo que está descrito no Artigo 4, incluindo "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos". Qualquer projeto ou trabalho, sobre qualquer tema histórico, sem exceção. Incluindo também "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História". Qualquer publicação, exposição ou evento, sobre qualquer tema histórico. Sem exceção.

O projeto de lei antigo tinha esse caráter restritivo; e sua nova redação pela ANPUH e pela SBHC mantém esse caráter restritivo. 

Pode-se alegar que a redação do projeto de lei não está muito boa, mas que a intenção é que ninguém seja proibido de fazer nada. Nesse caso, a solução é muito simples: basta mudar a redação do projeto de lei, em dois pontos. Mudar o Artigo 2, deixando apenas: 
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador
e alterar o caput do Artigo 4, colocando: 
Art. 4º São atribuições não exclusivas dos historiadores.

Basta mudar isso, se a intenção REAL for a de não proibir ninguém de se dedicar às atividades históricas.

Se a ANPUH e a SBHC persistirem em afirmar que não é necessário mudar a redação e que o projeto de lei não proíbe ninguém de desenvolver as atividades descritas no Artigo 4, podemos então perguntar por que motivo foi feita uma mudança no primeiro inciso desse Artigo, eliminando das atribuições dos "historiadores" o ensino de História no nível superior. 

No projeto original, constava:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;

Na nova proposta, consta:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;

Desapareceu a menção ao ensino superior. 

Se aquilo que consta no Artigo 4 é apenas uma listagem daquilo que os "historiadores" podem fazer, sem proibir outras pessoas de realizar as mesmas atividades, então não era necessário fazer nenhuma mudança. Vejamos como a SBHC justificou essa alteração do texto, na mensagem à qual me referi acima:

"3. No que se refere ao ensino de história, mantivemos a posição há muito explicitada de que, no caso do magistério superior, a autonomia universitária é o valor fundamental, sendo inaceitável reservar a atuação nesse nível de ensino apenas aos historiadores com registro profissional; e, no caso do magistério na educação básica, a preparação em curso de licenciatura deveria ser explicitamente prevista."

Vamos analisar cuidadosamente essa afirmação. A alínea I do Artigo 4 foi alterada, no acordo entre a ANPUH e a SBHC, porque a SBHC manteve a posição de que é " inaceitável reservar a atuação nesse nível de ensino apenas aos historiadores com registro profissional". Se o texto não fosse mudado, o projeto estabeleceria que apenas os historiadores com registro profissional poderiam atuar no ensino superior de História. Está claro? Pois é. Esse exemplo mostra que a própria SBHC admite que os itens que integram o Artigo 4 estabelecem atividades que só podem ser exercidas pelos historiadores com registro profissional.

Por fim, se a ANPUH e a SBHC insistirem ainda em dizer que o projeto de lei não proíbe ninguém de se dedicar a qualquer atividade histórica, podemos fazer um desafio aos membros das diretorias dessas associações: registrem em cartório uma declaração de que eles (como pessoas físicas) se comprometem a indenizar as pessoas que porventura sejam proibidas de exercer atividades históricas, no caso de aprovação desse projeto de lei; e que também se comprometem a não fazer uso de medidas protelatórias para pagar essas indenizações, depois de condenados. Uma declaração registrada em cartório, como essa, mostraria a honestidade intelectual e boa vontade dessas pessoas. 

Comentários finais

Repetindo o que escrevi no início: a proposta da ANPUH e da SBHC apresenta inúmeros problemas em seus detalhes. Apontei apenas três de seus defeitos gravíssimos.

Algum tempo atrás, divulguei uma sugestão de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4699/2012:

Essa minha sugestão elimina qualquer aspecto proibitivo do projeto de lei, permitindo no entanto o registro profissional de historiadores e a abertura de concursos para contratação de historiadores, que seriam os pontos principais defendidos pela ANPUH inicialmente.

Sou contra a proposta da ANPUH e da SBHC, porque representa uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica. 

Roberto de Andrade Martins


Proposta da ANPUH e da SBHC de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4699/2012:

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei.
Art. 3º O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é assegurado aos:
I – portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição regular de ensino;
II - portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
III - portadores de diploma de mestrado ou doutorado em História, expedido por instituição regular de ensino, ou por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
IV - portadores de diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela CAPES que tenha linha de pesquisa dedicada à História;
V – aos profissionais diplomados em outras áreas que tenham exercido, comprovadamente, há mais de 5 (cinco) anos, a profissão de Historiador, a contar da data da promulgação da lei.
Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação.
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou  empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados. 
Art. 7º O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. 

Fonte de informação sobre o acordo entre ANPUH e SBHC

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