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20 de dezembro de 2013

Posição da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (ANPARQ)

A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (ANPARQ) analisou a nova proposta de redação da ANPUH para o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador e CONDICIONOU SEU APOIO a essa proposta à inclusão de um novo parágrafo no Projeto de Lei.


NOTA PÚBLICA DA ANPARQ DE APOIO CONDICIONADO AO PROJETO DE LEI 4699/2012 – QUE REGULAMENTA A PROFISSÃO DO HISTORIADOR

Salvador, 29 de novembro de 2013

Em Assembleia acontecida no dia 28 de novembro de 2013, na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA), os Programas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo representados na Assembleia Extraordinária da ANPARQ (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo) deliberaram pelo APOIO CONDICIONADO ao Projeto de Lei 4699/2012 – considerando o teor do documento retificado, por meio de emenda ao texto em tramitação na Câmara dos Deputados, após reunião realizada no dia 21 de agosto de 2013 entre a ANPUH (Associação Nacional de História), a SBHC (Sociedade Brasileira de História da Ciência), a SBHE (Sociedade Brasileira de História da Educação), os Deputados Policarpo Fagundes, Chico Alencar, Pedro Uczai e o Senador Paulo Paim.

A ANPARQ compreende a importância e a legitimidade do pleito da ANPUH, mas teme prejuízos para os arquitetos e urbanistas que lidam com as áreas de História da Arquitetura, História da Cidade, História do Urbanismo, História do Paisagismo, História do Design, História da Arte – tanto considerando aqueles que atuam no ensino destas disciplinas nas graduações e pós-graduações em arquitetura e urbanismo, como para aqueles que se dedicam à pesquisa histórica nestas áreas de atuação.

A Associação reconhece os esforços despendidos pela ANPUH para adequar o Projeto de Lei ao livre exercício das histórias específicas às diversas áreas do conhecimento, mas admite que o seu conteúdo, mesmo com as pertinentes retificações propostas e incorporadas, ainda poderá vir a ser mal interpretado pelas entidades e agentes que coordenarão o ensino e a pesquisa em História.  

Deste modo, a ANPARQ, seguindo sugestão contida em carta aberta divulgada pela FAEB (Federação de Arte/Educadores do Brasil) no dia 04 de agosto de 2013, condiciona o apoio ao PL 4699/2012 ao seguinte termo: que além das qualificações já existentes para o perfil do historiador – bem como aquelas incorporadas na emenda ao Projeto de Lei – seja acrescentado item com semelhante teor:

Profissionais do ensino e da pesquisa dedicados à investigação histórica de sua própria área de conhecimento e atuação (arte, arquitetura e urbanismo, ciência, educação, filosofia, direito etc.), também serão considerados historiadores nos termos da presente lei.

Acreditamos que esta nova retificação descartaria qualquer problema relativo à interpretação da lei no que se refere ao exercício do ensino e da pesquisa das histórias específicas a cada campo do saber. Por outro lado, estamos seguros que este item não traria nenhum prejuízo para os historiadores após a desejável aprovação do PL 4699/2012. Mas serviria, de fato, para proteger, de juízos equivocados, os profissionais que legitimamente atuam no campo da investigação histórica em suas áreas de formação, mas que não são graduados ou pós-graduados em cursos de História.

Gleice Azambuja Elali
Presidente da ANPARQ – gestão 2013/2014

          O documento original está disponível neste link:
http://www.anparq.org.br/img/noticias/1391536380_anparqnotadeapoiocondicionadoaopl4699enviada.jpg

23 de outubro de 2013

Manifesto internacional da Divisão de História da Ciência e Tecnologia (DHST) da Internacional Union of History and Philosophy of Science and Technology (IUHPST) contra o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

A maior organização internacional de História da Ciência e Tecnologia apresenta críticas às restrições que o Projeto de Lei 4699/2012 pretende impor aos pesquisadores de história da ciência, história da arte e outras áreas semelhantes. 


"[...] em nome de nossos colegas brasileiros e da comunidade internacional de historiadores da ciência, nós recomendamos fortemente que a proposta de legislação seja rejeitada em sua forma presente, ou pelo menos emendada de modo a reconhecer e celebrar a amplitude e a diversidade de competências, conhecimentos especializados e formações educacionais dos muitos tipos de historiadores que constituem a profissão histórica."

Veja o texto completo desse manifesto, abaixo.



União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia (IUHPST)
Divisão de História da Ciência e da Tecnologia (DHST)
Escritório do Presidente

22 de Outubro de 2013

Prezados senhores, senhoras, colegas e ilustres legisladores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal do Brasil:

Escrevo em nome do Comitê Executivo da Divisão de História da Ciência e da Tecnologia (Division of the History of Science and Technology) da União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia (International Union for the History and Philosophy of Science and Technology), em resposta à proposta de lei brasileira 4699/2012 de regulamentação da profissão histórica.

A União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia é membro do Conselho Internacional de Ciências (International Council for Science, ICSU, da UNESCO). Sua Divisão de História da Ciência e da Tecnologia representa 49 organizações nacionais e mais de 20 comissões e seções científicas, e é o organismo internacional que representa a história da ciência e da tecnologia, e o líder mundial na sua promoção. Nosso recente Congresso Internacional de História da Ciência, Tecnologia e Medicina (International Congress of the History of Science, Technology and Medicine, ICHSTM), realizado em Manchester, no Reino Unido, atraiu 1.800 participantes de todo o mundo - incluindo um grande contingente do Brasil. Realmente, com base em uma notável proposta da delegação nacional do Brasil, nosso próximo Congresso Internacional em 2017 será realizado no Rio de Janeiro - nosso primeiro encontro a ser realizado no hemisfério sul. Esta é uma clara indicação da elevada estima com a qual a comunidade brasileira de história da ciência é considerada internacionalmente, e esperamos que o encontro do Rio de Janeiro seja tão bem sucedido quanto o de Manchester.


Sendo uma disciplina histórica, a história da ciência procura produzir interpretações equilibradas e objetivas sobre os significados históricos e culturais de instrumentos científicos, ideias científicas e práticas científicas em seus muitos e variados contextos de desenvolvimento e uso. Por causa da natureza especializada de grande parte do conhecimento científico e técnico, os historiadores da ciência geralmente precisam de treino científico ou matemático, assim como histórico. Sem tal conhecimento especializado, grande parte da história da ciência simplesmente não poderia ser escrita. Por isso, nossa profissão inclui estudiosos com diplomas em ciência, matemática, medicina, engenharia e outros campos, assim como muitos com diplomas em história. Embora muitos de nós - incluindo alguns dos membros mais eminentes de nossa profissão - não tenhamos títulos formais em história, todos nós encorajamos rigorosos métodos históricos, padrões e valores em nossa pesquisa e nosso ensino.

Exigindo que os professores de história e os historiadores com cargos públicos possuam qualificação formal em história, a proposta de legislação não reconhece de forma adequada a diversidade de habilidades exigida em um campo histórico especializado como o nosso. Suspeitamos que há muitos outros casos semelhantes - a história da arte é um exemplo óbvio. Como membros da corrente principal da profissão histórica, os historiadores da ciência são capazes de fazer enormes contribuições à pesquisa, ensino e preservação da herança cultural precisamente por causa da diversidade das formações educacionais das quais eles provêm. Por exemplo, o conhecimento do papel social e cultural da ciência, e a aquisição das ferramentas de pensamento crítico necessárias para avliar a ciência e para criar políticas científicas - certamente uma das habilidades fundamentais necessárias pelos jovens de hoje e pelos tomadores de decisão do futuro - são aprendidas melhor no estudo focalizado da trajetória da ciência, que um historiador da ciência pode proporcionar. Qualquer tentativa de produzir uma legislação limitadora terá profundas consequências negativas, deixando de reconhecer isso, e marginalizará a história da ciência e outros setores vitais e intelectualmente arrebatadores da disciplina histórica.

Portanto, em nome de nossos colegas brasileiros e da comunidade internacional de historiadores da ciência, nós recomendamos fortemente que a proposta de legislação seja rejeitada em sua forma presente, ou pelo menos emendada de modo a reconhecer e celebrar a amplitude e a diversidade de competências, conhecimentos especializados e formações educacionais dos muitos tipos de historiadores que constituem a profissão histórica.

Atenciosamente,

Efthymios Nicolaidis
Presidente IUHPST/DHST
Divisão de História da Ciência e da Tecnologia
União Internacional de História e Filosofia da Ciência e da Tecnologia

Tradução: Roberto Martins

Efthymios Nicolaidis

Veja o documento original, em inglês:

20 de outubro de 2013

"Memória como reserva de mercado": nova crítica de Pádua Fernandes ao Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

O escritor Pádua Fernandes divulgou no dia 17/10/2013, no seu blog "O Palco e o Mundo", uma nova série de críticas à proposta de regulamentação da profissão de historiador (Projeto de Lei 4.699/2012). 


Já havíamos divulgado em Agosto as análises mais antigas de Pádua Fernandes:

Veja abaixo o seu novo texto, copiado do seu Blog:

Pádua Fernandes

Memória como reserva de mercado VI: a inconstitucionalidade do projeto da ANPUH


O projeto que cria uma reserva de mercado para os detentores de diploma em História (de graduação ou de pós-graduação), em lamentável iniciativa da Associação Nacional de História (ANPUH), recebeu em 7 de agosto de 2013 aprovação pelo Senado Federal, e hoje tramita na Câmara dos Deputados. No contexto da lógica corporativista que domina o sistema político nacional, esse projeto é mais um dos exemplos teratológicos de reserva de mercado, seja para filósofos, manicures, DJ, astrólogos etc.: 

Já escrevi como o projeto criaria uma barreira contra outras profissões para a pesquisa: sua abrangência impediria, por exemplo, que juristas pudessem escrever e ensinar sobre história do direito, físicos sobre a história da física etc. Escrevi, em outra ocasião, que "Uma objeção prática ao projeto pode ser construída a partir da noção de que, que em vários temas, o portador do diploma em História não é aquele que terá condições de escrever a melhor história, por falta do instrumental teórico de outros saberes.

E, mesmo que ele fosse o mais apto a escrever sobre os "temas históricos", na amplidão pretendida, faria sentido dar-lhe o monopólio dessa escrita? Em nome de que ética estabelecer-se-ia o monopólio desse reduzido grupo social sobre a construção da identidade da própria sociedade?"

É exatamente isso o que se pretende, e o historiador da ciência Roberto de Andrade Martins logrou verificá-lo: a Revista Paraibana de História, mantida pela seção daquele Estado da ANPUH, resolveu impedir a publicação, em suas páginas, de artigos de quem não possua o diploma em história. Martins descobriu que a revista tinha decidido aplicar o projeto de reserva de mercado antes mesmo de ele ser aprovado: 

Dezenas de manifestações, do exterior e do Brasil, levantaram-se contra o projeto, e podem ser lidas no blogue de Roberto Martins: 

Entre os opositores, está a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência 

Ainda não vi nenhuma declaração do Instituto Brasileiro de História do Direito, no entanto.

Na sede da SBPC, em setembro deste ano, ocorreu uma reunião para tratar de possíveis mudanças no projeto: 

A Sociedade Brasileira de História para Ciência chegou a um arranjo com a ANPUH, incluindo-se na reserva de mercado, isto é, reforçando o obscurantismo. A SBPC, com razão, rejeitou as mudanças. No blogue de Roberto Martins, pode-se ler sobre esses acontecimentos: 

Ele mesmo critica o projeto como "uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica". 
problemas que a alternativa de projeto que ele mesmo elaborou não apresenta:  

Já apontei o descuidado e sumaríssimo trabalho da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal no ligeiro parecer sobre o projeto de reserva de mercado: 

Nesta breve nota, lembrarei dos parâmetros constitucionais sobre a liberdade profissional reafirmados em algumas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Ela está prevista, ressalte-se, entre os direitos e garantias fundamentais - não se trata de algo que deva ficar ao arbítrio de meros interesses corporativos, trata-se de uma previsão necessária para a cidadania. 

II

O inciso XIII do artigo 5º da Constituição da República dispõe que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". Uma vez que a regra geral é a liberdade, as exceções devem ser previstas de forma restritiva, para que não haja fraude a esse direito fundamental. Essa restrição, afirma o Supremo Tribunal Federal, justifica-se desde que haja risco à sociedade no exercício da profissão por pessoas sem a habilitação necessária. O legislador não é livre na regulamentação das profissões: só poderá criar restrições ao exercício se elas se justificarem pelo interesse público.

No recurso extraordinário nº 511.961-SP, julgado em 17 de junho de 2009, sobre que já escrevi: 
o STF decidiu que era inconstitucional a exigência de diploma em jornalismo para os profissionais da imprensa. A liberdade profissional não era o único direito fundamental ferido, mas também a liberdade de expressão e de comunicação (artigo 5º, IV, IX e XIV) e de imprensa, especificamente no artigo 220, caput e § 1º. No quarto parágrafo da ementa do acórdão, a Corte deixou claras as limitações que pesam sobre o Poder Legislativo:

A Constituição de 1988, ao assegurar a liberdade profissional (art. 5o, XIII), segue um modelo de reserva legal qualificada presente nas Constituições anteriores, as quais prescreviam à lei a definição das "condições de capacidade" como condicionantes para o exercício profissional. No âmbito do modelo de reserva legal qualificada presente na formulação do art. 5o, XIII, da Constituição de 1988, paira uma imanente questão constitucional quanto à razoabilidade e proporcionalidade das leis restritivas, especificamente, das leis que disciplinam as qualificações profissionais como condicionantes do livre exercício das profissões.

Essas limitações são impostas pela Constituição da República e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos; não é comum que o STF se preocupe com o controle de convencionalidade, mas aqui, ao contrário do que fez no caso da Lei de Anistia, ele cuidou dos deveres internacionais do Estado Brasileiro. Transcrevo parte do oitavo parágrafo da ementa:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (caso "La colegiación obligatoria de periodistas" - Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos - OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência de diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de 25 de fevereiro de 2009).

A Corte Interamericana também pertence ao sistema de proteção dos direitos humanos da OEA, e não apenas a Comissão. Esse julgamento teve apenas um voto vencido, do Ministro Marco Aurélio.

Outro caso recente de grande repercussão foi o julgamento do recurso extraordinário nº 603.583-RS, em 26 de outubro de 2011. O Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, considerou constitucional o exame da OAB, justamente por identificar interesse público na preservação da sociedade contra o risco que profissionais inabilitados causariam. O ministro relator, Marco Aurélio, lembrou que

[...] a liberdade de profissão não se resume à esfera particular. Certas profissões, como as de médico, engenheiro, arquiteto, se exercidas por pessoas despidas das qualificações técnicas necessárias, podem resultarem graves danos à coletividade. Foi essa lógica que conduziu à imposição de pena privativa de liberdade para o exercício ilegal de profissão, conforme o artigo 47 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.

O Ministro ainda recordou dos índices que apontam um nível baixo do ensino superior em Direito no país. Sobre o assunto, para meus alunos de primeiro semestre, em geral lembro de antiga matéria da Carta Capital, "A miséria usa beca", em que um dos entrevistados, bacharel em direito que nunca foi aprovado no exame, afirmou que era analfabeto quando se formou: 

Afinal, é possível ingressar analfabeto no ensino superior, ao menos em universidades privadas 
já ocorreu, nesse tipo de instituição, até mesmo a defesa do analfabetismo contra os estudos de pós-graduação: 

Pouco antes desse importante acórdão, o STF julgou, em 1º de agosto de 2011, o recurso extraordinário nº 414.426-SC. Trata-se de outro caso histórico, relatado pela ministra Ellen Gracie, em que se decidiu, também de forma unânime, que não era constitucional exigir a inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil para o exercício profissional dessa atividade artística. Além da ausência de perigo para a sociedade, a liberdade de expressão, prevista no inciso IX do artigo 5º da Constituição da República, era violada com aquela exigência que cerceava a manifestação artística.

III

O projeto de reserva de mercado para os portadores de diploma em história atenderia às exigências de razoabilidade e de proporcionalidade impostas ao legislador? Uma vez que a liberdade de profissão apenas pode sofrer exceções em razão do interesse público de evitar riscos advindos da falta de qualificação dos profissionais, parece-me que o projeto surtiria o efeito oposto ao pretendido: ele diminuiria o nível da formação profissional e se revelaria uma grande ameaça à educação no Brasil.

A conjugação dos artigos 4º e 5º do projeto faria, com que, se aprovado, uma série indefinida de atividades se tornasse monopólio dos historiadores com diploma em história:

Uma série indefinida, pois a expressão "temas históricos" pode abranger qualquer fato social. Vê-se que o projeto pretende fazer com que tais profissionais desalojem outros no magistério, nos museus e até nas tevês, provavelmente pensando em auferir alguns royalties do sucesso de telenovelas como Escrava Isaura... Note-se como se multiplicariam os conflitos jurídicos com arqueólogos, museólogos e outros profissionais que teriam que se abster dos "temas históricos" em suas atividades, o que é praticamente impossível. 

No campo da educação, o monopólio pretendido imporia intelectuais com formação totalmente inadequada, os historiadores com diploma em história, em campos inusitados. Estranhos à tabela periódica, tentariam explicar os períodos da história da química; a ignorantes em teoria da harmonia caberia ensinar história da música; a estrangeiros às categorias jurídicas atribuir-se-ia o monopólio dos diferentes campos da história do direito; gente incapaz de diferenciar entre um Giotto e um Tiziano se apossaria da história da arte etc.

Se aprovado o projeto, seria deveras histórica a contribuição da ANPUH para o declínio do ensino superior brasileiro. Embora tal declínio venha atender os interesses corporativos dos historiadores que tal associação representa, não se pode honestamente defender que ele corresponda ao interesse público, tampouco aos critérios constitucionais.

Tal é o ângulo, utilitário, do prejuízo à sociedade que o projeto geraria. Há outro, também presente na Constituição, que é o prisma da liberdade. As liberdades de expressão e de informação são violadas pelo projeto; nos casos que mencionei do Supremo Tribunal Federal, elas estavam sempre em jogo. Com este projeto, seria afetada também a liberdade de cátedra, prevista no artigo 205, II ("liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber").

Retomo o que escrevi na primeira parte desta nota. A ANPUH, no caso da Revista Paraibana, já demonstrou o que pretende: calar os outros profissionais em tudo que seja "tema histórico". Nesse projeto inaudito de censura, um historiador como o recém-falecido Gorender teria que trabalhar no exterior.

No campo das humanidades, a regra é que uma reflexão mais profunda sobre os objetos de saber adote uma perspectiva histórica, sem o que não se pode compreendê-los efetivamente. Por que as outras áreas das humanidades teriam que se curvar aos historiadores e renunciar a essa dimensão dos fatos sociais?

A ética desse projeto é a da apropriação privada do que é comum que, epistemologicamente, só poderia mesmo levar a uma negação da interdisciplinaridade. Um dos pontos risíveis é que a legislação pretendida violaria o que o próprio estatuto da ANPUH afirma defender (a livre pesquisa em história); ademais, o presidente de tal associação, em um exemplo engraçadíssimo de contradição performativa, gosta de citar Foucault, que não poderia ter elaborado a tese da História da loucura se estivesse sob a égide de uma norma obscurantista semelhante: 

Epistemologicamente, o projeto não faz sentido. Profissionais de diversas áreas e formações fazem história, e não apenas os formados nesta área, e isso, que denota a importância fundamental da disciplina, parece não ser bem entendido por aqueles que não fizeram outra coisa senão a estudar.

O projeto tem inconstitucionalidades gritantes, é epistemologicamente contrário às próprias características do saber histórico, que não se presta a monopólios corporativos; e, politicamente, revela-se profundamente antidemocrático: por ferir liberdades fundamentais e por converter essa importante atividade de construção do comum e da identidade social, a história, em monopólio de certo grupo de profissionais, que aparentemente deseja se dedicar ao oficialismo historiográfico com o amparo da legislação.

Pádua Fernandes

Blog de Pádua Fernandes

Postagem original: 

10 de outubro de 2013

Manifesto da American Historical Association, contra o projeto de lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

O presidente atual, o ex-presidente e a futura presidente da American Historical Association (Associação Americana de História, AHA) enviaram à Câmara dos Deputados uma correspondência alertando sobre problemas do projeto de lei 4699/2012 


"Um sistema mais aberto parece bem mais preferível do que um que exclui completamente as pessoas que não têm uma credencial muito específica. Nós entendemos que tal rigidez é necessária para cirurgiões, pilotos e assim por diante, mas é difícil elaborar um argumento semelhante para a pesquisa e ensino da História; e, na ausência de tal argumento convincente, acreditamos que qualquer regulamentação das profissões históricas deveria ser mais amplamente inclusiva do que esta lei parece ser."

A American Historical Association (AHA) é a maior e mais antiga sociedade de historiadores dos Estados Unidos, tendo sido fundada em 1884 e recebido credenciamento do Congresso em 1889. Possui atualmente cerca de 14.000 membros, que pertencem não apenas aos Estados Unidos mas a numerosos países do mundo inteiro. Um dos princípios que a American Historical Association defende é a liberdade acadêmica.

Veja o texto completo desse manifesto:


4 de Outubro de 2013

Sr. Henrique Eduardo Alves
Presidente da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados
Gabinete 539, Anexo IV
Câmara dos Deputados, Praça dos Três Poderes
CEP: 70160-900
Brasília, DF, BRASIL

A quem possa interessar,

Como alguns historiadores brasileiros solicitaram a opinião da Associação Histórica Americana (American Historical Association, AHA) sobre o Projeto de Lei 4699/2012, de regulamentação da profissão de historiadores no Brasil, estamos escrevendo para expressar nossas preocupações sobre alguns de seus aspectos.

Nós somos o atual presidente, ex-presidente imediato, e a presidente-eleita da Associação Histórica Americana, mas falamos aqui apenas por nós mesmos; o Conselho da AHA não discutiu este assunto. 

Reconhecemos e aplaudimos a intenção do projeto de lei de assegurar que apenas pessoas devidamente qualificadas deem aulas, organizem exposições e executem outras funções relacionadas à História. Reconhecemos também que promulgar regulamentos nesta área ou não promulgá-los envolve complicadas negociações entre garantir que esse trabalho seja bem feito e incentivar uma participação ampla na discussão pública e na educação.

Não há solução única ou perfeita para estas questões, e nós certamente não temos a pretensão de recomendar um arranjo institucional particular para uma sociedade com a qual nenhum de nós está intimamente familiarizado. E, é claro, também compreendemos que, numa sociedade democrática, a tarefa de legislar é uma tarefa de fazer acordos.

No entanto, existem alguns aspectos da legislação proposta que nos chocam e preocupam. Como tudo o que já aconteceu pode ser considerado parte da “história”, os limites da disciplina são intrinsecamente vagos, e muitos tipos de competências são legitimamente relevantes. Numerosas contribuições valiosas foram feitas a essa disciplina por pessoas com formação em Antropologia, Sociologia, Geografia, Literatura, Direito e assim por diante, bem como por algumas pessoas com titulação em ciências naturais, e algumas sem absolutamente qualquer diploma. Além disso, a natureza da pesquisa e da comunicação histórica é tal que permitir mais participantes no campo beneficia os que já estão envolvidos: enquanto os sapatos feitos pelo sapateiro A podem diminuir as oportunidades para o sapateiro B, uma pessoa adicional oferecendo uma perspectiva nova e esclarecedora sobre algum tópico histórico importante deveria ser uma notícia bem-vinda para os estudiosos que já estão envolvidos em analisá-lo. Mais importante ainda, a adição da voz daquela pessoa enriquece o público, que se beneficia de uma possível discussão mais vigorosa da história. A proposta de lei parece impedir pessoas sem diplomas em História de manter a maioria dos empregos nesse campo, mesmo se houver ampla evidência de que eles são capazes de dar importantes contribuições, ou se eles já o tiverem feito.

Um sistema mais aberto parece bem mais preferível do que um que exclui completamente as pessoas que não têm uma credencial muito específica. Nós entendemos que tal rigidez é necessária para cirurgiões, pilotos e assim por diante, mas é difícil elaborar um argumento semelhante para a pesquisa e ensino da História; e, na ausência de tal argumento convincente, acreditamos que qualquer regulamentação das profissões históricas deveria ser mais amplamente inclusiva do que esta lei parece ser. Conseguir essa inclusão de uma forma responsável poderá implicar em distinguir entre as funções relacionadas à História para as quais existem muitas alternativas possíveis de qualificação, em relação a um diploma em História, e as funções para as quais existem poucas ou mesmo nenhuma alternativa.

Nós esperamos que nossas observações sejam úteis para a avaliação da proposta de lei.

Atenciosamente,

Kenneth Pomeranz
University of Chicago
Presidente

Jan Goldstein
University of Chicago
Presidente-eleita

William Cronon
University of Wisconsin-Madison
Ex-Presidente imediato

(tradução: Roberto Martins)

Kenneth Pomeranz e Jan Goldstein

Veja a correspondência original, em inglês:


Professor Michael Matthews se pronuncia contra o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

O professor Michael Matthews, conhecido líder da área de História e Filosofia da Ciência aplicada à Educação, Presidente da Comissão de Ensino Conjunta (Interdivisional Teaching Comission) das divisões da União Internacional de História e Filosofia da Ciência (International Union for History and Philosophy of Science) da UNESCO, manifestou-se contra o Projeto de Lei 4699/2012.


Em nome da Comissão, o professor Matthews criticou a obrigatoriedade da realização de pós-graduação específica para o desenvolvimento de pesquisas e para o ensino de História da Ciência. 

"A Comissão está espantada e desapontada com essa proposta. Ela fará a pesquisa acadêmica sobre história da ciência recuar no Brasil, e prejudicará a reputação do país no exterior."

Veja o documento completo abaixo.


4 de Outubro de 2013

Prezado membro do Congresso Brasileiro,

Sou Presidente da Comissão de Ensino Conjunta (Interdivisional Teaching Comission) das divisões da União Internacional de História e Filosofia da Ciência (International Union for History and Philosophy of Science) da UNESCO.

A Comissão foi informada a respeito de um projeto de lei que está diante do Congresso Brasileiro e que tornaria ilegal que estudiosos que não tivessem diploma em História da Ciência ensinassem esse assunto em universidades brasileiras. A Comissão está espantada e desapontada com essa proposta. Ela fará a pesquisa acadêmica sobre história da ciência recuar no Brasil, e prejudicará a reputação do país no exterior. 

É louvável que o Congresso se preocupe com a qualidade do ensino e da pesquisa desse campo vital, mas a lei proposta certamente prejudicará e diminuirá a qualidade dessa disciplina no Brasil. Alguns dos mais importantes pesquisadores atuais e do passado e escritores sobre história da ciência vieram de fora do domínio daqueles treinados formalmente nessa disciplina. Poderiam ser mencionados muitos nomes, mas é suficiente indicar os dos professores Gerald Holton (Departamento de Física, Harvard University), Michael Ruse (Departamento de Filosofia, Florida State University), William Brock (Departamento de Química, Manchester University) e Mario Bunge (Departamento de Filosofia, McGill University). Nenhum deles possui treino formal em história da ciência; seu treino formal é em física, química e filosofia. Em conjunto esses quatro estudiosos contribuíram talvez com 30 importantes livros sobre história da física, história da biologia e história da química. Uma consulta do Google Scholar mostrará mais de 1.000 citações de seus trabalhos. São líderes internacionais na disciplina. No entanto, estranhamente, nenhum deles teria a permissão de assumir uma posição de ensino no Brasil se essa proposta se tornasse lei. Isso seria uma grande perda para a pesquisa e para o estudo no Brasil. 

Temos a esperança de que o Congresso Brasileiro terá a sabedoria de rejeitar essa proposta de legislação. Aprovar tal legislação prejudicaria muito a reputação acadêmica do Brasil na comunidade internacional.

Atenciosamente,

Professor Michael R. Matthews

(tradução: Roberto Martins)

Michael R. Matthews

Veja a carta original, em inglês:


8 de outubro de 2013

Crítica de Roberto de Andrade Martins à proposta de emenda da ANPUH e da SBHC ao projeto de lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador

A Associação Nacional de História (ANPUH) e a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) realizaram um acordo e apresentaram uma nova proposta de emenda ao PL 4699/2012. Essa proposta é inaceitável. Veja os motivos abaixo.


No dia 24 de setembro a Associação Nacional de História (ANPUH) divulgou em seu site (e também no Facebook) que havia feito um acordo com a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e elaborado uma proposta conjunta de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4.699/2012 de regulamentação da profissão de historiador. 

No dia 02 de outubro, a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) enviou um informe aos seus associados, confirmando e justificando o acordo feito com a ANPUH. Até o momento em que este documento estava sendo redigido (08/10/2013), no entanto, estranhamente não constava nenhuma notícia sobre o assunto no site da SBHC. Apenas a ANPUH divulgou esse comunicado da SBHC, no dia 04/10:
http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=4341

Veja a seguir algumas críticas a respeito dessa proposta conjunta ANPUH + SBHC. O texto completo da proposta dessas associações está reproduzido ao final desta postagem. 

“Sou contra a proposta da ANPUH e da SBHC, porque representa uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica.” Roberto de Andrade Martins

Roberto de Andrade Martins

Além de inúmeros problemas em seus detalhes, a proposta da ANPUH e da SBHC apresenta os seguintes defeitos gravíssimos:

(1) Dificultaria, no futuro, o desenvolvimento da História das Ciências em nosso país - fato com o qual a SBHC deveria se preocupar.
(2) Mantém o caráter corporativo da proposta anterior, estabelecendo uma reserva de mercado para pessoas que podem não ter qualificação para desempenhar as funções que lhes serão privativas.
(3) Continua a restringir a liberdade de desenvolver atividades na área de História, como o projeto anterior, apesar do que afirmam a ANPUH e a SBHC.

Descrevo abaixo, de modo mais claro, esses pontos.

(1) A proposta da ANPUH e da SBHC dificultaria, no futuro, o desenvolvimento da História das Ciências em nosso país - fato com o qual a SBHC deveria se preocupar.

O acordo entre a ANPUH e a SBHC modificou a proposta do Projeto de Lei 4699/2012, de modo a incluir entre os "historiadores" (definidos no Artigo 3) não apenas as pessoas que possuem diploma de graduação ou pós-graduação em História, mas também os que efetivamente se dedicam à História há pelo menos 5 anos, e os que tenham pós-graduação em programas nos quais exista "linha de pesquisa dedicada à História". É um avanço em relação à redação original, mas um avanço muito tímido. 

Suponhamos que um professor universitário de Literatura, de Arte, de Astronomia, de Matemática, de Direito ou de qualquer outra área, que não preenche esses requisitos, queira começar a se dedicar (depois da aprovação dessa malfadada lei) à história de sua disciplina. A única possibilidade de ser aceito como "historiador" e poder desempenhar atividades de historiador é fazer uma pós-graduação em História tout court, ou em programa de pós-graduação que tenha linha de pesquisa histórica. Não é prevista qualquer outra possibilidade. Mesmo se ele tiver 50 anos de idade e reconhecida trajetória acadêmica em sua área, precisará voltar aos bancos escolares para obter um diploma que lhe permita se dedicar à história de sua disciplina. Isso me parece INACEITÁVEL e representaria uma barreira que prejudicaria muito, no futuro, o desenvolvimento da história das ciências no Brasil. 

Podem me responder que seria, de fato, desejável que essas pessoas adquirissem uma formação específica história para poderem se dedicar à história de suas disciplinas. Muito bem: convençam essas pessoas, mas não as obriguem a fazer uma pós-graduação, se elas não quiserem. As pessoas devem ter liberdade para seguir ou não aquilo que outras pessoas lhes recomendam fazer. 

Por outro lado, é evidente que a proposta da ANPUH e da SBHC estabelece uma formalidade ridícula, que não tem nada a ver com a competência acadêmica. De acordo com essa proposta, uma pessoa que conclua uma pós-graduação em um programa de mestrado ou doutorado no qual exista uma "linha de pesquisa dedicada à História" adquire, ipso facto, o direito de se registrar como historiador e desempenhar todas as atividades que são exclusivas dessa profissão (podendo inclusive se candidatar a cargos públicos de historiador, etc.). Mas a proposta da ANPUH e da SBHC apenas indicou uma condição do programa de pós-graduação, e não da pessoa diplomada por esse programa. Suponhamos que um programa de pós-graduação em Física tenha uma linha de pesquisa sobre História da Física. Qualquer pessoa diplomada por esse programa, mesmo se apenas tiver estudado Teoria das Cordas, poderá se registrar como historiador e exercer legalmente todas as atividades previstas no Artigo 4 do projeto de lei. Não é absurdo? Por outro lado, se um programa de pós-graduação, por acaso, não tiver uma linha de pesquisa com o nome "história", ou "história de...", os seus mestres e doutores não terão qualquer direito de serem considerados historiadores, mesmo se tiverem feito diversas disciplinas históricas e/ou desenvolvido sua pesquisa sobre um tema histórico. Outro absurdo. 

(2) A proposta da ANPUH e da SBHC mantém o caráter corporativo da proposta anterior, estabelecendo uma reserva de mercado para pessoas que podem não ter qualificação para desempenhar as funções que lhes serão privativas.

De acordo com essa proposta, 
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou  empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.
Tal registro é permitido aos "historiadores" definidos pelo Artigo 3 do projeto de lei, que já foi comentado acima.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados. 

Todas as entidades que prestam serviço em História (por exemplo: museus, arquivos e outras) seriam obrigadas a ter "historiadores" (definidos no Artigo 3) em seus quadros, ou pagar serviços prestados por tais "historiadores". 

O Censo Demográfico do Brasil de 2010 identificou 75 mil pessoas com diploma em História.

Todos esses 75.000 podem se registrar como "historiador", de acordo com essa proposta, e ocupar cargos em museus, arquivos e outras instituições, tenham ou não um treino adequado para desempenhar essas atividades. Devemos nos lembrar que uma grande proporção deles fez licenciatura em História. Todos esses 75.000 (além de outros que se diplomaram depois de 2010) poderão prestar, por exemplo, "assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação", mesmo se nunca estudaram como se faz isso. 

Além disso, com a nova redação dada através do acordo entre ANPUH e SBHC, os novos cargos serão disputados também por historiadores da ciência, da educação, da arte, do direito, da filosofia, etc. Todos terão os mesmos direitos a participar dessa reserva de mercado, tenham ou não um treino adequado para desempenhar essas atividades

Essa proposta é absurda. Ela não pode contribuir para a melhora da qualidade dos serviços em história, e sim para a criação de vagas que ficarão à disposição de muitas pessoas incompetentes. 

(3) A proposta da ANPUH e da SBHC continua a restringir a liberdade de desenvolver atividades na área de História, como o projeto anterior, apesar do que afirmam a ANPUH e a SBHC.

Há pessoas que continuam a afirmar que essa proposta (como a antiga) não proíbe ninguém de se dedicar a atividades históricas. Pode-se questionar a inteligência ou a honestidade intelectual dessas pessoas. De fato, vamos analisar o texto:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei.

Será tão difícil assim compreender esse texto? Vejam bem, o Artigo 2 não afirma "É livre o exercício da atividade de historiador", e sim "É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei."

Essa frase pode ser reescrita, sem mudança de significado, da seguinte forma: "Aqueles que atendam às qualificações e exigências estabelecidas nesta lei poderão exercer a atividade de historiador." Há, portanto, condições para exercer a atividade de historiador. Quais são essas qualificações e exigências? As que estão estabelecidas no próprio projeto de lei, que determina no seu Artigo 3 quem pode ser considerado um "historiador". E somente eles podem exercer a atividade de historiador. Que atividade é essa? Tudo aquilo que está descrito no Artigo 4, incluindo "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos". Qualquer projeto ou trabalho, sobre qualquer tema histórico, sem exceção. Incluindo também "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História". Qualquer publicação, exposição ou evento, sobre qualquer tema histórico. Sem exceção.

O projeto de lei antigo tinha esse caráter restritivo; e sua nova redação pela ANPUH e pela SBHC mantém esse caráter restritivo. 

Pode-se alegar que a redação do projeto de lei não está muito boa, mas que a intenção é que ninguém seja proibido de fazer nada. Nesse caso, a solução é muito simples: basta mudar a redação do projeto de lei, em dois pontos. Mudar o Artigo 2, deixando apenas: 
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador
e alterar o caput do Artigo 4, colocando: 
Art. 4º São atribuições não exclusivas dos historiadores.

Basta mudar isso, se a intenção REAL for a de não proibir ninguém de se dedicar às atividades históricas.

Se a ANPUH e a SBHC persistirem em afirmar que não é necessário mudar a redação e que o projeto de lei não proíbe ninguém de desenvolver as atividades descritas no Artigo 4, podemos então perguntar por que motivo foi feita uma mudança no primeiro inciso desse Artigo, eliminando das atribuições dos "historiadores" o ensino de História no nível superior. 

No projeto original, constava:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior;

Na nova proposta, consta:

Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;

Desapareceu a menção ao ensino superior. 

Se aquilo que consta no Artigo 4 é apenas uma listagem daquilo que os "historiadores" podem fazer, sem proibir outras pessoas de realizar as mesmas atividades, então não era necessário fazer nenhuma mudança. Vejamos como a SBHC justificou essa alteração do texto, na mensagem à qual me referi acima:

"3. No que se refere ao ensino de história, mantivemos a posição há muito explicitada de que, no caso do magistério superior, a autonomia universitária é o valor fundamental, sendo inaceitável reservar a atuação nesse nível de ensino apenas aos historiadores com registro profissional; e, no caso do magistério na educação básica, a preparação em curso de licenciatura deveria ser explicitamente prevista."

Vamos analisar cuidadosamente essa afirmação. A alínea I do Artigo 4 foi alterada, no acordo entre a ANPUH e a SBHC, porque a SBHC manteve a posição de que é " inaceitável reservar a atuação nesse nível de ensino apenas aos historiadores com registro profissional". Se o texto não fosse mudado, o projeto estabeleceria que apenas os historiadores com registro profissional poderiam atuar no ensino superior de História. Está claro? Pois é. Esse exemplo mostra que a própria SBHC admite que os itens que integram o Artigo 4 estabelecem atividades que só podem ser exercidas pelos historiadores com registro profissional.

Por fim, se a ANPUH e a SBHC insistirem ainda em dizer que o projeto de lei não proíbe ninguém de se dedicar a qualquer atividade histórica, podemos fazer um desafio aos membros das diretorias dessas associações: registrem em cartório uma declaração de que eles (como pessoas físicas) se comprometem a indenizar as pessoas que porventura sejam proibidas de exercer atividades históricas, no caso de aprovação desse projeto de lei; e que também se comprometem a não fazer uso de medidas protelatórias para pagar essas indenizações, depois de condenados. Uma declaração registrada em cartório, como essa, mostraria a honestidade intelectual e boa vontade dessas pessoas. 

Comentários finais

Repetindo o que escrevi no início: a proposta da ANPUH e da SBHC apresenta inúmeros problemas em seus detalhes. Apontei apenas três de seus defeitos gravíssimos.

Algum tempo atrás, divulguei uma sugestão de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4699/2012:

Essa minha sugestão elimina qualquer aspecto proibitivo do projeto de lei, permitindo no entanto o registro profissional de historiadores e a abertura de concursos para contratação de historiadores, que seriam os pontos principais defendidos pela ANPUH inicialmente.

Sou contra a proposta da ANPUH e da SBHC, porque representa uma tentativa de restringir a atividade de pesquisa histórica, que deve ser totalmente livre, sem qualquer limitação, de acordo com os valores democráticos de nosso país e o princípio da liberdade acadêmica. 

Roberto de Andrade Martins


Proposta da ANPUH e da SBHC de emenda substitutiva ao Projeto de Lei 4699/2012:

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º Esta Lei regulamenta a profissão de historiador, estabelece os requisitos para o exercício da atividade profissional e determina o registro em órgão competente.
Art. 2º É livre o exercício da atividade de historiador, desde que atendidas as qualificações e exigências estabelecidas nesta lei.
Art. 3º O exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, é assegurado aos:
I – portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição regular de ensino;
II - portadores de diploma de curso superior em História, expedido por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
III - portadores de diploma de mestrado ou doutorado em História, expedido por instituição regular de ensino, ou por instituição estrangeira e revalidado no Brasil, de acordo com a legislação;
IV - portadores de diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela CAPES que tenha linha de pesquisa dedicada à História;
V – aos profissionais diplomados em outras áreas que tenham exercido, comprovadamente, há mais de 5 (cinco) anos, a profissão de Historiador, a contar da data da promulgação da lei.
Art. 4º São atribuições dos historiadores:
I – magistério da disciplina de História nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, desde que seja cumprida a exigência da LDB quanto à obrigatoriedade da licenciatura;
II – organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História;
III – planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica;
IV – assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica;
V – assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos, para fins de preservação.
VI – elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.
Art. 5º Para o provimento e exercício de cargos, funções ou  empregos de historiador, é obrigatória a comprovação de registro profissional nos termos do art. 7º desta Lei.
Art. 6º As entidades que prestam serviços em História manterão, em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados. 
Art. 7º O exercício da profissão de historiador requer prévio registro na Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do local onde o profissional irá atuar.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. 

Fonte de informação sobre o acordo entre ANPUH e SBHC

30 de setembro de 2013

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) rejeita as propostas de emenda ao PL 4699/2012 defendidas pela ANPUH e pela SBHC

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) rejeitou as propostas de emenda ao Projeto de Lei 4699/2012 (regulamentação da profissão de historiador) defendidas pela Associação Nacional de História (ANPUH) e pela Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC).


A professora Helena Nader, presidente da SBPC, enviou no dia 30/09 correspondência ao Congresso Nacional, na qual afirma:

"[...] estamos encaminhando o posicionamento da SBPC contrário à aprovação do PL 4699/2012 ora em discussão na Câmara Federal. Para a nossa entidade, também as propostas substitutivas feitas pela ANPUH e SBHC não respondem adequadamente às preocupações externadas em manifestações anteriores da SBPC e de outras entidades e instituições e nos posicionamos contra sua aprovação."

Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

São Paulo, 30 de setembro de 2013
SBPC-114/Dir.

Excelentíssimo Senhor
Deputado POLICARPO FAGUNDES

Senhor Deputado,

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) manifestou-se anteriormente, por meio de sua diretoria e de sua Assembleia Geral, contrariamente à aprovação do PL 4699/2012, que regulamenta a profissão de historiador e que estava para ser votado no Congresso Nacional. Juntamente com outras entidades científicas e acadêmicas buscou, na sequência, estabelecer um processo de discussão com os parlamentares e entre as entidades científicas envolvidas. A partir de uma reunião no Senado Federal, na qual estavam presentes o senador Paulo Paim, o deputado Chico Alencar e Vossa Senhoria, além das principais entidades envolvidas, ficou acertado que seriam feitas tentativas entre as entidades para se chegar a uma proposta substitutiva comum.

A SBPC tomou a iniciativa de convidar, então, as diversas entidades para uma reunião em sua sede, em São Paulo, com o propósito de buscar o pretendido entendimento.  A reunião foi realizada, com a participação das entidades mencionadas, e possibilitou, de fato, que surgissem duas propostas alternativas: uma da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC) e outra pela Associação Nacional de História (ANPUH), que aceitou introduzir algumas modificações na proposta original do PL 4699/2012. No entanto, permaneceram divergências importantes.

Como não houve uma proposta substitutiva aceita por todas as entidades, resolveu-se proceder a novas consultas junto às direções das entidades. Neste sentido a SBPC realizou uma consulta a toda sua direção e ao seu Conselho, indicando as propostas novas que surgiram (da SBHC e da ANPUH), além da proposta original do PL 4699/2012 e da proposta da Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul (AFHIC) de rejeição do PL 4699/2012. Nesta consulta, estes órgãos de direção da SBPC se posicionaram unanimemente contra a aprovação do PL 4699/2012 na sua formulação original.  Em relação às duas propostas modificadoras surgidas, a alternativa elaborada inicialmente pela SBHC e a nova versão proposta pela ANPUH, a Diretoria e o Conselho da SBPC entenderam, por maioria ampla, que elas também não atendem às preocupações externadas anteriormente pela SBPC, por outras entidades científicas e acadêmicas e por muitos historiadores e pesquisadores, sobre o caráter muito restritivo do PL 4699/2012 em seus artigos 3, 4 e 5.

Em função disto, estamos encaminhando-lhe o posicionamento da SBPC contrário à aprovação do PL 4699/2012 ora em discussão na Câmara Federal. Para a nossa entidade, também as propostas substitutivas feitas pela ANPUH e SBHC não respondem adequadamente às preocupações externadas em manifestações anteriores da SBPC e de outras entidades e instituições e nos posicionamos contra sua aprovação. É importante que o Congresso Nacional dê prosseguimento ao processo de discussão ampla com as sociedades cientificas, órgãos governamentais e instituições de ensino e pesquisa das áreas envolvidas para o estabelecimento de uma legislação adequada, buscando construir alternativas que definam e garantam direitos profissionais, mas que não resultem em sérios prejuízos à educação, à pesquisa e à cultura no Brasil.

Atenciosamente,

HELENA B. NADER
Presidente da SBPC


Ver também esta postagem, que contém as cartas enviadas pela SBPC em formato PDF:
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=89622

29 de setembro de 2013

Comentários de Bruno Flávio Lontra Fagundes sobre o Projeto de Lei 4699/2012

O professor Bruno Flávio Lontra Fagundes, doutor em História pela UFMG, tem participado da discussão virtual a respeito do Projeto de Lei sobre regulamentação da profissão do historiador (PL 4699/2012) - por exemplo, no site Café História. Ele apresenta aqui algumas considerações sobre esse tema, abordando um aspecto pouco discutido: a formação que os historiadores devem ter, para poderem contribuir em outras áreas, além do ensino formal e da pesquisa.



Bruno Flávio Lontra Fagundes
(Professor do Curso de História – UNESPAR – Campus de Campo Mourão/PR)

O PL da profissão de historiador e as propostas de mestrado profissional em História são sintomáticos de um processo, a meu ver, que vem de mais longe, e que, agora, sofre questionamentos naturais em sociedades que se transformam. Esse processo remonta ao tempo de institucionalização da História como disciplina acadêmica no Brasil. Em regra, primeiramente cursos de formação de professores, depois pesquisadores... e agora, numa sociedade que não aceita ver suas memórias e lembranças desprezadas? Com o tempo a História foi se mostrando criteriosa e construtora de um conhecimento sobre o passado que não se confunde com lembrança do passado. Lembrar não é conhecer! Os objetos da História estão enraizados na própria relação que estabelece com aqueles que a consomem. Essa relação durante décadas não havia sido questionada. Agora está. Não isentos de questionamentos, o PL da regulamentação e os mestrados profissionais encarnam demandas de um tempo transformado que requer de nós, historiadores, pensar em rever o que já nos garantiu, de algum modo, prestígio público e hoje já não nos garante muita coisa. Numa sociedade onde na escola há boas iniciativas – mas isoladas – com relação à matéria História, onde ela “não faz sentido”, acrescida da profusão de memórias muito esquentadas pelas mídias, nesse contexto, historiadores – generalizo – se vêem meio que “perdidos”, substituídos. Alunos neófitos chegados à academia histórica hesitam abandoná-la, porque ela não só promete muito pouco em oportunidade de trabalho, como também pouco seduz, talvez até porque promete pouco. Como a História disciplina pode ser desejada num contexto de inflação de memória? Não é questão de “atender demandas” como se cursos fossem “balcão de negócios” – não é essa a única maneira de equacionar o que seriam essas “demandas sociais por história”. Mas demandas por horizontalidade na abordagem de questões da realidade histórica que podem ser informadas pelo que surja do debate com e da participação na sociedade. Não só acatar demandas, mas influir sobre elas, de modo que possam gerar lugares novos de trabalho que se somem à tradicional ocupação docente. E sem perder a “criticidade”, esse quase-slogan do empenho profissional do historiador. Se não sabemos dizer exatamente como fazer isso, a meu ver o PL da regulamentação é iniciativa meio que desesperada de colegas que sabem que precisam fazer algo, mas que, ainda não sabendo como, expelem no mundo iniciativas esperando “ver no que vai dar”. Pessoalmente tenho muitas reservas ao projeto de regulamentação, mas o apóio porque é uma atitude.

No entanto, no Brasil há cursos de História em vários lugares com realidades muito diferentes, com distribuição de recursos desigual, cursos pequenos, sem prestígio, mas que nunca conseguem dar suas soluções próprias, pois sempre pautados pelo princípio hegemônico que identifica qualidade com pesquisa acadêmica restritivamente, o que constrange quase tudo a ela, inibindo parte da finalidade dos cursos com, por exemplo, mais genericamente falando, “projetos de educação para a História” – onde há pesquisa, sempre, mas não a pesquisa como um fim em si mesmo, mas pesquisa como meio. Trucidados por imposições diárias de produtividade, a pesquisa acadêmica com um fim em si mesma força os profissionais a se dedicarem a ela com quase exclusividade, e uma vez na pós-graduação, só há tempo para ela. Com o critério soberano da pesquisa acadêmica, vão sendo inibidos, por exemplo, projetos de extensão, há décadas reduzidos a “cursos de reciclagem” de professores do ensino médio. Desenvolver bons projetos na graduação – com Ensino e Extensão, por exemplo, onde se pode desenvolver uma expertise – é muito arriscado, porque as exigências ligadas à pesquisa acadêmica são draconianas. Quando colegas enfiados em cursos noutras realidades precisam estruturar um curso novo, quase sempre só conseguem ter a cabeça na pesquisa e na pós-graduação, reproduzindo um padrão de curso que, a meu ver, necessita ser, senão revisto, combinado com outros padrões. Aí, a velha história: a graduação, lugar onde boas iniciativas podem ser desenvolvidas e serem valorosas, fica desprezada, praticamente se limitando a preparar alunos para a seleção da pós-graduação.


Porque o sistema forçou criar um padrão de apuração da qualidade desconsiderando várias realidades do país onde há cursos de História variados com possibilidades de atuação também variadas. A realidade mudou, mas nossos cursos de História permanecem! Se o PL da regulamentação e os mestrados profissionais forçarem um movimento de revisão de nossos cursos, excessivamente cativos da pesquisa acadêmica strictu sensu, já terá sido bom: o historiador não é mais apenas professor, ele pode trabalhar com memória e museus, bens culturais e patrimônio, assessorias e consultorias em turismo, memória e patrimônio, mídias, arte e cultura etc. Qual de nossos cursos ajuda na formação para isso? Isso tem um custo não baixo. Colegas ligados a núcleos regionais de ensino no Paraná, onde sou professor, chegam a dizer, depois de conhecerem o mercado de trabalho em escolas da rede pública, que mudanças urgentes são “questão de sobrevivência” de cursos. Essa versão pode ser um pouco “narrada no modo trágico”. A pergunta que nos inquieta a cada vestibular é: “foram quantos candidatos para História?” Depois, começado o curso, começa a refrega diária para que alunos não abandonem o curso no meio do caminho! Há cursos de História em cidades brasileiras do interior onde prefeituras devolvem rubricas orçamentárias por falta de projetos - inclusive na área de memória e patrimônio – porque faltam profissionais para fazê-los. Faltam profissionais para fazer projetos de memória e patrimônio em cidades que têm cursos de História! Criticáveis ou não, o PL e os mestrados profissionais – mais o PL – atacam isso: formar para trabalhar, lugar para trabalhar! J Malerba questiona se novos cursos precisam ser acadêmicos, Keyla Grinberg sugere a inoperância – palavra minha – de nossos cursos para formar novas linhagens – palavra minha - de historiadores, Luciano Figueiredo fez já considerações de um mercado de caráter jornalístico para historiadores em revistas de História criteriosas vendidas em bancas de jornal. É limitador esperar trabalhar junto à sociedade em atuações restritivamente acadêmicas pela prática docente. Há cursos e cursos de História no Brasil e sua grande maioria não tem nem de longe o perfil dos cursos federais de História localizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre etc., onde o aluno tem como expectativa maior ser pós-graduado. Se quiser ensino, que vá para as FAEs, ou se quiser qualquer outra coisa mais, que faça autodidatamente!

Quando cursos de História querem combinar pesquisa, extensão, ensino, o que ajuíza de sua intenção é, sobremaneira, a pesquisa acadêmica, reproduzindo uma hierarquia institucional que alimenta o status quo intra-universitário! Há depoimentos de professores que reclamam de alunos que querem mudar do PIBID para o PIBIC porque “dá mais prestígio”. É de trabalho para formados em História de que se trata, repito! O PL está longe de ser ideal, mas é, bem ou mal, uma atitude, e os mestrados profissionais vêm para cobrir uma falta de formação para outras atuações! Não vivemos mais o tempo em que cursos viviam da mística do intelectual guia da sociedade, padrão de crítica e de criticidade. A sociedade, bem ou mal, está politizada, e quer ser sujeito social de fato. Se nossos cursos fossem mais permeáveis a demandas de história/memória que andam por aí, talvez não houvesse necessidades de PL e nem de mestrados profissionais. Há iniciativas importantes. O departamento de História da UFPR abriu, em 2009, um curso de bacharelado noturno em História - Memória e Imagens, de 4 anos.  Garantida a formação consistente de parte da grade curricular do curso acadêmico, desde o primeiro período o aluno trabalha com a vertente da imagem, vídeos, etc. e/ou da memória, museus, casas de memória etc., e no terceiro ano faz a opção definitiva por "habilitações” que os encaminham para oficinas de produção de sites, video-documentários, exposições, etc. Vão fazer formação prática para tentar trabalho no mercado de vídeo e de instituições de patrimônio histórico com o conhecimento que podem oferecer. O curso de História da UFRN fez parceria com a TV Universitária: quando, para matérias e/ou programas da grade de programação, precisarem de alguma pesquisa histórica, recrutem alunos do curso de História para fazerem-na. É outro tabu: por que não discutirmos um “lado prático da História”?! “O que fazer com História depois de formado?”, pergunta-se, parafraseando o "para que serve a História?" de Marc Bloch. Aliás, quase nenhum de nós conseguiu convincentemente responder a essa pergunta até hoje!


É preciso ter pesquisa acadêmica, é preciso ter a avaliação dos pares, mas não só: é preciso abrir para o diálogo com os não-formados em História baseado – aceitemos ou não – na ideia de que eles também podem “fazer história”. E fazem de fato e não há motivos para estarmos afastados de seus juízos e do diálogo com eles. Há bastante, mui-tos, a maioria talvez de alunos que não vai se formar para ser pós-graduado ou irem para o mercado docente de nível superior. Nosso padrão de curso é meio esquizofrênico, deslocado da realidade da grande maioria do país e alheio a outras oportunidades de atuação. Se nossos cursos e critérios de julgamento se renovassem, creio que muitos outros cursos seriam valorizados. Se do PL e de outras atitudes vierem outras atitudes, já terá valido bastante . Não sabemos convencer senão a nós mesmos. A bola da vez é o “diálogo social”, como foi o slogan da última ANPUH. Por ele talvez possamos encontrar junto à sociedade legitimidade, importância e reconhecimento de nosso valor profissional que nos faça ser desejados. Não é de se supor que na sociedade só existam sujei-tos avessos a argumentos, ponderações e versões do passado que os historiadores têm a oferecer. Porque se certos usos do passado são condenáveis, também o é uma recusa de participar em razão de justificativas virtuosas da ciência e do cuidado metodológico, que, no fundo, podem ser argumento de salvaguarda de lugares e posições sociais em nome de uma “autonomia” muitas vezes apanágio de privilégios. Porque o argumento de colegas que alegam corporativismo e criação de uma casta com o PL é meia verdade. Casta e corporativismo já existem na academia. Não é fazer diálogo social que ponha em risco o “dever de memória” ou endossem os usos do passado que promovem inverdades ou mistificações memorialistas da sociedade em benefício de interesses particularistas excludentes. Não! Mas diálogo que seja de igual para igual, por meio de participação diversa na sociedade, onde profissionais de História se empenhem em se mostrarem, convencerem sujeitos com suas versões e narrativas do passado. Como toda política, em certas horas perderá, em outras vencerá. Diálogo, trabalho e participação social. Embora armem historiadores com material para isso, nossos cursos favorecem muito pouco essa ida ao diálogo e à participação. Essa é que é a verdade!


Sobre o autor:
Bruno Flávio Lontra Fagundes, bacharel e licenciado em História, 1988, mestre em Estudos Literários, 2000, doutor em História, 2010, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de História em diferentes atuações, como planejamento e organização de arquivos privados, assessoramento a políticas de patrimônio histórico-cultural, participação em edição crítica de textos históricos, ensino de História de nível médio e superior, assessoria/consultoria/pesquisa para reforma de exposições permanentes de museus e centros de cultura, pesquisa autônoma, micro-empresa na área de Memória, divulgação de conhecimento histórico. Atualmente é professor adjunto do curso de História da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), campus de Campo Mourão (PR). 

25 de setembro de 2013

Entrevista de Roberto de Andrade Martins sobre o Projeto de Lei 4699/2012 de regulamentação da profissão de historiador (dia 15/08/2013)

Abaixo transcrevemos entrevista concedida por Roberto de Andrade Martins, através de e-mail, a Sérgio Campos Gonçalves, Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), campus de Franca. A entrevista, com data de 15 de agosto de 2013, deveria ser publicada, mas não o foi. Fica aqui o seu registro.


"Estou lutando pelo direito de outras pessoas que queiram se dedicar seriamente à pesquisa e ao ensino de História e que não possuem nem querem ter um diploma em História."

Roberto de Andrade Martins

Sérgio Campos Gonçalves (SCG) - Qual sua visão sobre o projeto de profissionalização? Com quais pontos do projeto concorda, se é que concorda com algum, e quais são os mais problemáticos, em sua opinião?

Roberto de Andrade Martins (RAM) - Concordo que os historiadores têm o direito de contar com uma legislação que regulamente a profissão de historiador. Mas não concordo com a forma da atual proposta. Minha visão é que o projeto foi mal redigido. Pessoas que defendem o Projeto de Lei 4699/2012 sobre a profissão do historiador, como os membros da Diretoria da ANPUH, afirmam que o objetivo dessa proposta é apenas delimitar quem poderia ser chamado "historiador"; e que não há a intenção de proibir ninguém de se dedicar à história. Não é isso o que o texto do projeto de lei afirma. Ele restringe o exercício das atividades de historiador aos portadores de diploma em História; e apresenta uma enorme lista de prerrogativas exclusivas dos portadores de diploma em História, tais como "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos". Ou seja: apenas portadores de diploma em História podem elaborar trabalhos sobre temas históricos - sem exceção. Da forma como foi redigido, o projeto de lei é extremamente restritivo. Para corresponder àquilo que a Diretoria da ANPUH apregoa, ele precisaria ser completamente reformulado. Poderia, por exemplo, adquirir uma forma semelhante à Lei nº 12.592, de 18 de janeiro de 2012, que dispõe sobre a profissão de Cabeleireiro, Barbeiro, Esteticista, Manicure, Pedicure, Depilador e Maquiador, a qual não estabelece nenhuma proibição ao exercício dessas atividades. 


Em minha opinião, os pontos mais problemáticos do projeto de lei são os seguintes: 

(1) Ele não diferencia entre licenciados e bacharéis, violando assim a legislação educacional brasileira, que permite apenas aos licenciados (que possuem formação pedagógica) o exercício do magistério nos níveis fundamental e médio. Também não diferencia os diversos níveis de formação, e poderia levar ao absurdo de que uma pessoa apenas com graduação (licenciatura ou bacharelado) poderia exigir o direito de lecionar no ensino superior (incluindo mestrado e doutorado) sem ter título de pós-graduação. Seria necessário mudar a redação do projeto, para adequá-lo à legislação e às normas universitárias. Essa adequação precisa aparecer explicitamente no texto do projeto de lei.

(2) O texto do projeto, tal como está, não reconhece os direitos de pessoas que, embora sem diploma em História, já exercem atividades na área de História há vários anos. Quase todas as leis de regulamentação profissional incluem um artigo ou parágrafo que indica que as pessoas que, na data de publicação da lei, já se dedicam comprovadamente a essas atividades há pelo menos X anos, têm os mesmos direitos. Sem esse tipo de acréscimo, pessoas como os cientistas sociais que trabalham no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas não poderiam mais se dedicar à pesquisa e ensino de História, por exemplo. Essa correção precisa aparecer explicitamente no texto do projeto de lei. 

(3) Mesmo se for feita a correção indicada acima, o projeto de lei proibiria, no futuro, pessoas sem diploma em História de elaborar "trabalhos sobre temas históricos" (Artigo 4, alínea VI). Isso é inaceitável. Deve ser garantida a liberdade de pensamento e expressão, e isso inclui o direito de qualquer pessoa, com ou sem título em História, de estudar e elaborar trabalhos sobre temas históricos. Outro item do projeto de lei restringe aos portadores de diploma em História a "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História" (Artigo 4, alínea II). Isso também é inaceitável. Não pode haver proibições desse tipo. Qualquer pessoa deve poder, livremente, organizar informações e publicar livros sobre qualquer tema de História, ou sobre qualquer outro assunto. Muitos importantes historiadores brasileiros se pronunciaram contra o projeto de lei, sob este aspecto.

(4) O projeto de lei não leva em consideração a existência de tipos específicos de estudos históricos que não fazem parte do domínio de competência dos diplomados em História. Um exemplo simples é a história da filosofia. Nenhum curso de graduação ou pós-graduação em História, no Brasil, tem disciplinas sobre história da filosofia, nem desenvolve o treino intelectual necessário para a pesquisa e o ensino nessa área. Um historiador da filosofia precisa compreender profundamente o pensamento de cada pensador que estuda, diferenciando inclusive as diferenças e nuances existentes em diversas obras e fases do mesmo filósofo. É claro que um historiador, sem treino em história da filosofia, poderia estudar vários aspectos sociais da filosofia (por exemplo, as relações sociais entre os professores e departamentos de filosofia em vários países); mas não poderá desenvolver, com competência, uma história conceitual da filosofia, por lhe faltar treino para isso. Problemas semelhantes são encontrados no estudo, pesquisa e ensino de todos os estudos históricos referentes às diversas áreas de conhecimento humano (medicina, ciências exatas, arte, literatura, direito, etc.). A história conceitual da matemática exige um conhecimento de matemática, e assim por diante. O projeto de lei precisaria ser corrigido para distinguir esses casos. Não se pode exigir diploma em História para desenvolver pesquisas e para ensinar sobre a história das diversas áreas do conhecimento.

Apontei estes e outros pontos problemáticos, de forma mais detalhada, nas diversas páginas deste blog: 


SCG - Se aprovado, como tal projeto poderia afetar as pessoas que, a exemplo do senhor, que é membro do Grupo de Pesquisa sobre História, Teoria e Ensino de Ciências da USP,  trabalham diretamente com a história, mas em outros ramos, como no da história da ciência?

RAM - Do modo como o projeto de lei foi redigido, ele é muito restritivo. Se fosse aprovado, ele proibiria pessoas sem diploma em História de desenvolver atividades como o ensino de história, em todos os níveis. Como o texto do projeto de lei não estabelece qualquer exceção, eu próprio não poderia mais ministrar aulas sobre história da ciência. Algumas pessoas dizem que bastaria mudar o nome da disciplina, dando-lhe algum título como "evolução dos conceitos científicos". Parece-me, no entanto, que tal tipo de "jeitinho brasileiro" é indigno e inaceitável. Não há precedentes, em todo o mundo, de proibições desse tipo. Fora do Brasil, sou e continuarei a ser um "historian of science", ou "historien de la science", e no exterior tenho o direito de ministrar disciplinas com o nome "history of science", ou "histoire des sciences". Por que motivo não poderia fazer o mesmo no meu país? Será que preciso pedir asilo político e partir para o exílio? 

Se o projeto de lei for aprovado, com sua redação atual, os atuais historiadores da ciência que não possuem diploma em história também ficarão proibidos de fazer a "organização de informações para publicações, exposições e eventos sobre temas de História" (Artigo 4, alínea II). Não poderei mais organizar informações para publicar trabalhos sobre história da ciência, que é um tema histórico. Talvez possa publicar trabalhos sobre história da ciência se as informações estiverem desorganizadas, não tenho certeza... Também não poderei organizar informações sobre história da ciência para apresentar em eventos, nem participar da própria organização de eventos de história da ciência. Tudo isso me parece absurdo. É claro que também não poderei mais elaborar projetos de pesquisa, pois o texto do projeto de lei restringe aos portadores de diploma em História atividades como "elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos" (Artigo 4, alínea VI). Qualquer tema histórico, sem exceção. Só quem não leu com atenção o texto do projeto de lei, ou quem não sabe ler, poderia afirmar que o projeto não é proibitivo. Se aprovado, ele proibirá pessoas sem diploma em História de elaborar projetos e trabalhos sobre qualquer tema histórico.

SCG - Se aprovado, como se daria a continuidade do trabalho de historiar áreas específicas distintas da história, como a física, sobre a qual o senhor se debruça, com as quais os historiadores de formação normalmente têm pouca familiaridade?

RAM - Se o projeto de lei 4699/2012 for aprovado, com sua redação atual, a história conceitual de todas as áreas científicas deixaria de existir em nosso país, na prática. Os atuais historiadores da arte, da educação, da medicina, da filosofia, da linguística, da literatura e das outras áreas de conhecimento que não possuem diploma em História ficariam impedidos de continuar suas atividades; e os meros diplomados em História não poderiam substitui-los de modo competente, por lhes faltar o conhecimento específico dessas áreas do conhecimento. Como um historiador sem conhecimento científico poderia analisar os debates ocorridos durante o desenvolvimento da mecânica quântica? Como um historiador sem conhecimento científico poderia discutir as diferenças e semelhanças entre a teoria da relatividade de Einstein e as teorias de éter? Como um historiador sem conhecimento científico poderia analisar o que ocorreu durante a revolução astronômica dos séculos XVI e XVII? É claro que muitos historiadores poderiam responder: essas coisas não interessam, não precisam ser estudadas. Muito bem: podem não interessar a algumas pessoas. Mas será que outras pessoas devem ser proibidas de pesquisar temas históricos como esses? No resto do mundo, a história conceitual da física e das demais áreas de conhecimento é um empreendimento acadêmico digno, respeitado. Por que seria rejeitado no Brasil? Isso não pode acontecer. Isso não vai acontecer. O projeto de lei 4699/2012 não pode ser aprovado em sua forma atual. Precisa ser corrigido, ou rejeitado. 

SCG - O que motivou a tradução e divulgação de manifestos estrangeiros sobre a questão no blog? Como isso tem sido recebido por aqui?

RAM - Muitas pessoas, infelizmente, não possuem uma visão suficientemente ampla daquilo que ocorre no mundo todo. Sem essa perspectiva internacional, os debates sobre o projeto de lei adquirem uma aparência puramente local e as opiniões a favor e contra o projeto parecem todas ter o mesmo peso. Por isso me pareceu importante divulgar documentos que mostram como a situação é vista no exterior. Os que defendem o Projeto de Lei 4699/2012 sobre a profissão do historiador com sua redação atual procuram desqualificar os opositores, como os historiadores da arte, da educação, das ciências, etc. É importante que fique muito claro que eles estão se opondo a uma tradição internacional centenária. É importante que fique claro que, se o projeto de lei for aprovado, o Brasil será o único país do mundo a exigir diploma em História para o desenvolvimento de qualquer trabalho sobre temas históricos. Os historiadores de outros países que estão cientes desse projeto de lei ficam atônitos, incrédulos e depois horrorizados, quando compreendem o teor da proposta. Além dos documentos que temos traduzido e divulgado, recebemos comentários pessoais de diversos pesquisadores do exterior que se mostram indignados com essa tentativa de cercear a liberdade da pesquisa e do ensino sobre temas históricos. As manifestações estrangeiras têm, felizmente, produzido um forte impacto e um ótimo efeito. Muitas pessoas que nem mesmo paravam para pensar sobre o assunto estão agora refletindo mais cuidadosamente sobre o texto do projeto de lei e percebendo seus problemas. Isso tem ocorrido não apenas no meio acadêmico, mas também no Congresso Nacional. Os deputados federais, sobre quem recai atualmente a responsabilidade de julgar a validade desse projeto de lei, estão agora cientes de que, se essa proposta de regulamentação for aprovada em sua forma atual, isso terá repercussões internacionais indesejáveis. Considero, portanto, muito positivo o efeito da divulgação desses manifestos internacionais.  

SCG - Para contextualizar a entrevista, eu precisaria de um breve texto biográfico que evidenciasse, em sua trajetória profissional, a convergência para a história.

RAM - Desde criança, gostava muito de ler e "devorava" muitos livros por mês. Quando estava no ensino médio, encantei-me com física, química, biologia, filosofia e história das ciências. A partir dos 15 anos de idade comecei a ler muito, por conta própria, sobre esses assuntos. Resolvi fazer graduação em física, mas durante a graduação fiz disciplinas de filosofia da ciência e biologia, além de dedicar meus fins de semana a ler muito sobre história e filosofia das ciências, além de outros assuntos. Enfim: tinha uma grande curiosidade intelectual. Por qual motivo comecei a concentrar minha atenção principalmente na história das ciências? Não saberia responder. Isso foi acontecendo gradualmente. Em torno dos 30 anos de idade essa escolha já estava bem definida. Fiz meu doutorado em filosofia da ciência. Minha formação se deu, essencialmente, através de leituras. À medida que publicava trabalhos no Brasil e no exterior, fui adquirindo certa respeitabilidade. Há mais de 30 anos tenho bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq (atualmente, no nível 1-B), com projetos de história da ciência. Aposentei-me na Unicamp em 2010, o que me dá muita liberdade. Por isso, esse projeto de lei, se aprovado, não poderá me atingir. Estou lutando pelo direito de outras pessoas que queiram se dedicar seriamente à pesquisa e ao ensino de História e que não possuem nem querem ter um diploma em História. 

Roberto de Andrade Martins